1 A casa repousava, além de zero hora,
Quando o juiz no leito ouviu certo rumor ao fundo.
Quem seria? pensou, ansioso e expectante…
Talvez um assaltante…
Quem, no entanto, ousaria
Penetrar-lhe a mansão, construída no alto,
Com dois guardas, na ronda, de vigia?
2 A princípio, o ruído parecia
Um barulho tão leve, tão de manso,
Que mais se assemelhava ao vento na folhagem,
Quando o palácio, à noite, era paz e descanso.
3 Mas o brando alarido aumentava de porte,
Justamente na alcova sempre reservada
Em que ele, o juiz, mantinha um cofre forte.
Armou-se à pressa e afastou-se da cama,
Pés descalços, andou no carpete, em pijamas;
E pela porta além, levemente entreaberta,
Lobrigou a figura baixa e estranha
De um mascarado que se recobria
Numa capa sombria,
A furtar-lhe, no cofre escancarado,
Todo o dinheiro ali depositado.
4 Manejando lanterna diminuta,
O invasor ocupado nada escuta.
Mas o juiz entrando em fúria cega
Ergue o revólver, firme. Aponta e descarrega
Toda a carga de balas no infeliz
Que tomba morto agora em pleno escuro.
Indeciso e nervoso, o magistrado
A erguer-se em defensor do próprio domicílio,
Liga a luz, sob a dor do gesto cometido,
E fita o mascarado
A encharcar-se de sangue…
5 Chama os guardas amigos, de plantão,
Ativa o telefone e pede policiais
Que lhe arranquem do lar o assaltante caído,
Depois de se lavrarem
Depoimentos, notas, testemunhos
Para os efeitos justos e legais.
6 Efetuadas todas as medidas,
Um servente de mãos embrutecidas
Inspeciona o cadáver e, ao movê-lo,
Despe-lhe a capa enorme
E retirando a máscara de pano,
Vem ao juiz e informa, desumano:
— É um menino, Excelência … Um ladrão nato
Devia ter no jeito a esperteza de um rato.
7 Na angústia enorme do seu próprio drama,
O magistrado exclama:
— Horríveis tempos! Dias infelizes!…
Época de ladrões e meretrizes!…
Já não mais temos lar em segurança
Que possa resguardar uma simples criança…
Onde iremos, meu Deus? Meninos salteadores,
Crimes, violência, guerra e uma série de horrores!…
8 Nisso, quatro serventes se aproximam,
Carregam com cuidado o corpo inerte e triste,
Mas o Juiz, ao vê-lo, não resiste;
Detém todo o cortejo em súbita parada,
Cai sobre o morto em pranto convulsivo,
Beija-lhe a face inerme e ensanguentada,
Como se o jovem morto inda estivesse vivo
E bradou, em supremo desconforto:
— O que fiz, Grande Deus, para sofrer em minha própria casa,
Esta dor que me arrasa?
Matei para viver e estou aniquilado e morto;
Matei, mas nem de longe imaginava
Que abatia sem pena
O filho que adorava…
Deus, Grande Pai, dá-me de qualquer forma,
A expiação que me condena…
Lançava o sangue ao chão amplo e rubro rastilho
E o pobre prosseguia, em convulsões de dor:
— Dá-me forças, meu Deus!… Perdoa-me, Senhor!…
O pequeno assaltante era o seu próprio filho.
Maria Dolores
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