1.
Verificando o meu aproveitamento no caso de Segismundo, Alexandre, sempre
gentil, ao despedir-se dos Construtores, dirigiu-se ao diretor deles,
asseverando:
— Agradeço a você, Apuleio, quanto fez por André nestes últimos dias. Nosso companheiro não esquecerá o seu concurso amável.
2 O diretor sorriu, dirigiu-me
palavras de encorajamento, e, quando se dispunha a sair, em definitivo,
meu orientador lhe observou:
— Nosso amigo porém, necessita consolidar os ensinamentos recebidos.
André acompanhou um caso normal de reencarnação, no qual um esposo honesto
cedeu, inicialmente, aos nossos rogos para que Segismundo renascesse
com a serenidade imprescindível. Viu, de perto, um coração maternal
sensível e devotado, e permaneceu, em estudo, numa câmara conjugal defendida
pelo poder sagrado da prece e reconfortada pela proteção do Plano superior.
3 Entretanto, seria
justo observasse algum processo diferente, dos que existem por aí às
centenas, em que somos defrontados por obstáculos de toda espécie. Ficaria,
desse modo, habilitado a conhecer a extensão e complexidade de nosso
esforço para defender companheiros imprevidentes, que menosprezam a responsabilidade
moral, fugindo aos compromissos.
4 E, fixando um gesto
de carinho fraterno, interrogou:
— Não terá você, presentemente, um caso dessa ordem, onde André possa recolher as lições precisas?
— Temos, sim, — esclareceu Apuleio, atenciosamente, — temos o caso Volpíni.
5 E, porque Alexandre
ignorasse o processo a que se referia, continuou:
— Logo depois de organizar as bases de Segismundo, ocupei-me de outros serviços da mesma natureza e, entre esses, foi confiada à nossa vigilância a tarefa relativa ao irmão que mencionei. Creiam que tudo movimentamos no setor de assistência para evitar o fracasso do trabalho, entretanto, tenho a experiência por absolutamente impraticável.
6 — Quer dizer, então,
— redarguiu o meu instrutor com sabedoria, — que a futura mãe não correspondeu
à expectativa do nosso plano de ação…
— Isto mesmo, — prosseguiu o interlocutor. Enquanto os desequilíbrios se localizam
na esfera paternal ou procedem da influência de entidades malignas,
simplesmente, há recursos a interpor; no entanto, se a desarmonia parte
do campo materno, é muito difícil estabelecer proteção eficiente. 7
A pobre criatura, por duas vezes sucessivas, provocou o aborto inconsciente
pelo excesso de leviandades e, atualmente, será vítima das próprias
irreflexões pela terceira vez, segundo parece. Debalde temos oferecido
o socorro de que podemos dispor. A infeliz deixou-se empolgar pela ideia
de gozar a vida e irmanou-se a entidades desencarnadas da pior espécie,
que, para acentuar os seus planos sombrios, separaram-na do próprio
companheiro, ansiosas por lhe precipitarem o coração na esfera das emoções
baixas.
8 Enquanto Alexandre o ouvia,
em silêncio, Apuleio continuou, depois de longo intervalo:
— Volpíni atingiu agora o sétimo mês de gestação da nova forma física, mas
a noite próxima será decisiva para ele. Já recebi um apelo dos colaboradores
que ficaram nas imediações do caso, em serviço ativo, no sentido de
evitar certas extravagâncias da futura mãe, projetadas para hoje; entretanto,
não creio sejamos por ela obedecidos. 9
A organização fetal não se encontra em condições de suportar novos desequilíbrios
e, se a pobrezinha não despertar para o dever, abrirá, ainda hoje, uma
terceira falência. Se André puder vir conosco, dar-nos-á muito prazer.
10 Alexandre que me parecia
muito circunspecto, naquele momento, dando a ideia de quem não desejava
cultivar qualquer comentário menos edificante, considerou:
— Nosso companheiro irá com vocês. Por vezes, para preservar convenientemente a saúde, é preciso conhecer as enfermidades; para cultivar o bem, é necessário não ignorar a existência do mal.
2.
Com efeito, à noitinha, chegávamos, Apuleio, dois companheiros dele
e eu, a uma residência confortável e de aparência distinta.
2 O grande relógio de parede
mostrava vinte horas menos cinco minutos.
Seguindo o diretor, penetramos um aposento bem mobilado, onde se encontravam
três entidades desencarnadas, de horrenda figura, que, em virtude do
baixo padrão vibratório, não perceberam a nossa presença. 3
Conversavam entre si, combinando medidas detestáveis que não cabe relacionar
aqui. A certa altura da palestra, porém, referiam-se ao caso da reencarnação,
de maneira franca:
4 — Não sei, — comentou um
daqueles perversos inimigos do bem, — por que arte infernal vem resistindo
o intruso. Despejá-lo-emos na primeira oportunidade.
— Quando isto ocorre, — disse outro, — é que há “mãos de anjos” trabalhando
por trás.
5 — Pois que vão para
o inferno! — Exclamou o que parecia mais cruel. — Veremos quem pode
mais. Cesarina já nos pertence noventa por cento. Atende perfeitamente
aos nossos propósitos. Por que um filho intrujão em nossos planos? É
preciso combater até ao fim.
6 — No entanto, —
considerou o terceiro, que, até então, se mantinha em silêncio, — há
mais de seis meses estamos trabalhando em vão por alijá-lo!
— Mas temos conseguido muito, — tornou o mais revoltado; — não confio em que se possa aguentar por muito tempo. Talvez hoje façamos o resto. 7
Um filho viria roubar-nos, talvez, a boa companheira com que contamos
agora. Todas as atenções dela convergiriam para ele e o nosso prejuízo
seria enorme. Mas, se existem “mãos de anjos” trabalhando, temos “mãos
de demônios” para agir também. Já vencemos duas vezes; porque não vencer
agora, igualmente.
8 — E se o filho vier,
— considerou um dos interlocutores, — certamente virá o esposo de regresso.
Não poderemos segregá-lo a distância, por mais tempo, caso se verifique a realização.
— Isto, nunca! — Respondeu o adversário mais feroz, com inflexão sinistra.
9 Como era diferente aquela
paisagem interior, comparativamente à câmara de Raquel, onde levara
a efeito tão formosas observações, referentemente à tarefa reencarnacionista!
O aposento mantinha-se absolutamente desguarnecido de defesas magnéticas
e não se via o movimento de visitação espiritual da Esfera superior
que caracterizava a formação do novo corpo de Segismundo.
10 — Está observando?
— falou Apuleio, gentil, — nem sempre a nossa tarefa se desdobra ao
longo dos jardins afetivos. Muitas vezes, devemos operar sob verdadeiras
tormentas de ódio, que desintegram nossos melhores elementos magnéticos
de cooperação. Este caso é típico.
11 Recordei que a residência
de Adelino se enchia diariamente de afeições do Plano espiritual, e
perguntei:
— Mas, a futura mãe não dispõe de relações em nossa Esfera?
— De qualquer modo, — respondeu ele, — sempre temos bons amigos na zona superior
àquela em que nos encontramos; todavia, em certas circunstâncias, afastamo-nos
voluntariamente deles. Cesarina poderia contar com diversas amizades;
no entanto, ela mesma se incumbe de obrigá-las à ausência.
12 Impressionado, considerei:
— Não terá ela, contudo, um pai ou mãe, em nossos Círculos espirituais, que tome a si o sacrifício de defendê-la?
— Tem um pai que a estima com extremos de afeto, — esclareceu o diretor, —
no entanto, sofria imerecidamente pela filha leviana e grosseira, e
tanto padeceu por ela que os seus superiores, em nossa colônia espiritual,
submeteram-no a tratamento para olvido temporário da filha querida,
até que êle se recorde e se aproxime dela sem angústias emotivas.
13 O assunto era novo para
mim. Havia, então, recursos para aplicação do esquecimento no mundo
das almas?
Apuleio sorriu, bondoso, e falou:
— Não tenha dúvida. Em nossa Esfera, a dureza e a ingratidão não podem
perseguir o amor puro. 14
Quando as almas reencarnadas se revelam impermeáveis ao reconhecimento
e à compreensão, distanciamo-nos delas, naturalmente, ainda mesmo quando
encerrem para nós valiosas joias do coração, até que se integrem no
conhecimento das leis de Deus e se disponham a segui-las, em nossa companhia.
15 Quando somos fracos,
porém, embora muito amoráveis, e não nos sentimos com a precisa coragem
para o afastamento necessário, se merecemos o auxílio de nossos Maiores,
somos favorecidos com o tratamento magnético que opera em nós o esquecimento
passageiro.
3.
Nesse instante, Cesarina penetrou o quarto, seguida dos Espíritos Construtores,
que velavam por Volpíni, o reencarnante.
2 Enquanto a senhora se sentava
à frente de grande espelho, dando início a complicados arranjos de apresentação
festiva, os cooperadores de Apuleio se aproximaram, saudando-nos, atenciosos.
3 — Infelizmente,
— disse um deles ao chefe, — a situação é muito grave. É impossível
prosseguir em nosso esforço de assistência, com o êxito desejável. Nossa
irmã afunda-se, cada vez mais, nos desequilíbrios destruidores. 4
Unindo-se voluntariamente, — e indicou as entidades viciosas que a cercavam,
— a estes adversários infelizes, entrega-se, agora, a prazeres e abusos
de toda sorte. Seus desvios sexuais, nos últimos dias, têm sido lastimáveis,
e enorme é a quantidade de alcoólicos, aparentemente inofensivos, de que tem feito consumo sistemático. 5
Aliados semelhantes distúrbios às vibrações desordenadas do plano mental,
vemos que a posição de Volpíni é insustentável, não obstante nossos
melhores esforços de socorro.
6 Apuleio ouviu as graves
notificações em silêncio e observou em seguida:
— Já sei o que se projeta para esta noite.
— Sim, — considerou o interlocutor, — apelamos para a sua autoridade, porque
a organização fetal não poderá resistir a uma nova investida.
7 O diretor convidou-me a
examinar a gestante. Ao lado dela, permaneciam as entidades inferiores
a que me referi, que demonstravam absoluta ignorância de nossa presença.
8 Cesarina, com o excessivo
cuidado das mulheres demasiadamente vaidosas e inscientes da responsabilidade
moral, utilizava certos recursos para disfarçar o aspecto da gravidez
adiantada, deixando adivinhar que se preparava com esmero para uma noitada
de fortes emoções.
9 Fixei minha atenção no feto,
auxiliado pelo chefe dos Construtores, mas não pude esconder minha surpresa
e compaixão.
O caso Volpíni era muito diferente do processo de reencarnação verificado em
casa de Raquel. 10 A
forma física embrionária demonstrava manchas violáceas, revelando dilacerações.
Pequeninos monstros, somente perceptíveis ao nosso olhar, nadavam no
líquido amniótico, invadindo o cordão umbilical e apropriando-se da
maior parte do delicado alimento reservado ao corpo em formação. Toda
a placenta era assediada por eles, provocando-me terrível impressão.
11 Percebi, pela intensa anormalidade
dos órgãos geradores, que o aborto não poderia demorar-se.
Apuleio, igualmente, endereçando-me expressivo gesto com a cabeça, acusava forte preocupação.
12 Abandonou subitamente o
exame e falou-nos:
— Se a infeliz obcecada pelos prazeres criminosos não se detiver, nesta noite, a organização fetal será expelida até amanhã.
13 Depois de pensar alguns
momentos, salientou:
— Tentarei o derradeiro recurso.
4.
Apuleio dirigiu-se ao interior doméstico e voltou, seguido de uma senhora
idosa.
— Esta, — disse-me ele, indicando-a, — é a dona da casa e velha amiga
de Cesarina, suscetível de receber-nos a influenciação. Aproveitar-lhe-ei
o concurso para que a nossa desventurada irmã, de futuro, não possa
dizer que lhe faltou assistência e conselho adequado.
2 Num gesto bondadoso, já
observado por mim em diversos superiores do nosso Plano, colocou a destra
sobre a fronte da recém-chegada, que se acercou de Cesarina com muita
ternura, e falou:
— Minha amiga, estou receosa por você… Não vá. Desconfie de certas
amizades, pouco dignas. 3
Seu estado, Cesarina, é melindroso. Porque exceder-se? Uma festa de
aniversário, em pleno bar, não pode servir às suas necessidades presentes.
4 Abriguei você, em
nossa residência, como se o fizesse a uma filha e devo estar vigilante.
Nutro a esperança de vê-la reaproximar-se do esposo, que, segundo creio,
deve estar ausente por simples questões de incompatibilidade de gênios,
mas, se você não se defende do mal, como atender à situação?
5 Um dos infelizes seres da
ignorância e da sombra que perseguiam Cesarina, por invigilância dela,
envolveu-a nos braços, como se desejasse comunicar-lhe o seu estranho
e perigoso magnetismo. Vi que as entidades inferiores presentes observavam
de perto a senhora e lhe ouviam as palavras sensatas, porque todas exibiam
gestos e demonstrações de revolta e desagrado, que não podemos registar
aqui.
6 A interpelada, deixando-se
envolver pela influência neutralizante do mal, riu-se de modo franco
e acrescentou:
— Tranquilize-se, minha boa Francisca. Não precisará ensinar-me a virtude… Tenho meu compromisso para hoje, não posso faltar!…
7 — Não concordo,
Cesarina, — tornou a interlocutora com energia, sob a inspiração direta
de Apuleio, — nem estou fazendo pregação de virtude à sua consciência
responsável. Quero despertar suas fibras de esposa e mãe. O homem, cujo
convite você pretende atender, não merece confiança, nem é digno de
consideração. Além disso, seu organismo deve ser preservado. Não lhe
dói a expectativa de prejudicar o filhinho? Não pondera o futuro?
8 E a respeitável amiga continuou
advertindo com severidade maternal, enquanto a futura mãe de Volpíni
se mantinha em franca posição de negativa e impermeabilidade.
Duas horas durou a conversação, na qual o diretor dos Construtores usou da caridade, da lógica e da paciência, nas mais altas doses; todavia, ao fim desse tempo, um automóvel fonfonou à porta.
9 Cerrando o pequeno estojo
de perfumes, Cesarina abraçou a velha amiga desapontada e despediu-se:
— Adeus, voltarei mais tarde. Não tenho tempo a perder.
10 O veículo rodou a caminho
das avenidas asfaltadas.
As entidades perturbadas seguiram no carro célere, mas nós, esperando a manifestação de Apuleio, ali permanecemos, aguardando-lhe a palavra.
11 Algo triste, o chefe de
serviço dirigiu-se aos colaboradores, declarando:
— Podem regressar à nossa colônia, em descanso. Nada mais têm que fazer, por agora. O dever de todos foi bem cumprido.
12 E olhando para mim, significativamente,
acrescentou:
— Irei, eu mesmo, em companhia de André, buscar Volpíni para recolhê-lo em lugar conveniente.
13 O ambiente era de consternação,
porque, se os Espíritos Superiores são equilibrados, não são insensíveis.
Acompanhei Apuleio, durante longos minutos de silêncio, penetrando, em seguida, numa casa de barulho ensurdecedor.
14 O grande salão e departamentos
reservados estavam repletos de homens e mulheres inquietos, excitados
pela música bulhenta e estonteadora, mas a assembleia de desencarnados
de condição grosseira era muito maior, tomada da mesma alucinação de
perigoso prazer.
15 — Mantenha-se
em defensiva, — advertiu-me o diretor; — são poucos os desencarnados,
com reduzido tempo de experiência, que podem penetrar ambientes como
este, para serviços de proteção.
16 Não nos cabe descrever as
paisagens tristes, desdobradas ao nosso olhar. Cumpre-nos, tão somente,
esclarecer que não tivemos dificuldade para reencontrar Cesarina em
companhia de um cavalheiro menos escrupuloso, entre finas taças de alcoólicos,
elegantemente disfarçados.
17 Apuleio aproximou-se e retirou
Volpíni, que a ela se abraçava como criança semiconsciente. Em seguida,
vi-o aplicar passes magnéticos em toda a região uterina, empregando
infinito cuidado. Retomando Volpíni, que confiara às minhas mãos, para
poder operar com eficiência, falou-me, calmo:
18 — Desliguei o reencarnante
do santuário maternal; entretanto, não deveríamos esquecer de ministrar
o devido socorro à mãe invigilante. Ela precisa continuar a luta terrestre,
quanto possível, para aproveitar alguma coisa da oportunidade…
19 Retiramo-nos conduzindo
o companheiro, prematuramente desligado, a uma organização socorrista,
mas, depois de atender a todos os deveres que me competiam, desejei,
na qualidade de médico, observar o que se passava com a pobre mulher,
fracassada em sua missão sublime.
20 Nas primeiras horas da manhã,
dirigi-me à residência que visitáramos na véspera.
Com grande surpresa, porém, verifiquei que Cesarina não se encontrava em casa. Não se passaram muitos minutos e uma vizinha interpelava a senhora que Apuleio influenciara, perguntando-lhe o que eu desejaria saber.
— Cesarina, — explicou a matrona, preocupada, — na manhã de hoje foi
recolhida a uma casa de saúde, em estado grave.
21 No decorrer da rápida
conversação, recolhi as informações necessárias, relativamente ao endereço,
e procurei visitar, incontinenti, a infeliz criatura que deixáramos
na festa elegante da véspera.
Fortemente impressionado, vim a saber que Cesarina, em gravíssimas condições, acabava de dar à luz uma criança morta.
André Luiz