1.
— Precisa voltar aos serviços mais cedo? — Indagou Alexandre, assim
que tornávamos à via pública.
— Posso dispor de mais tempo, — respondi.
2 Meu interesse era enorme
na continuidade das instruções. Alexandre possuía experiências
médicas, vastíssimas. Minhas aquisições nesse terreno, em comparação com as dele,
representavam conhecimentos pálidos.
3 — Tenho ainda hoje uma assembleia
de esclarecimentos a irmãos encarnados, — continuou o orientador, —
e se você puder comparecer, teremos satisfação.
— Como não? Estou aprendendo e não devo perder a oportunidade.
4 Saímos.
As entidades
perturbadas mantinham-se à porta, dando a ideia de alguém à espera de
brecha para entrar.
Porque Alexandre prosseguia na palestra edificante, seguíamos, quase passo a passo, como quando na Crosta.
5 Estávamos nos primeiros
minutos da madrugada. Os transeuntes desencarnados eram numerosíssimos.
A maioria, de natureza inferior, trajava roupa escura, mas, de espaço
a espaço, éramos defrontados por grupos luminosos que passavam, céleres,
em serviços cuja importância se adivinhava.
6 — Há sempre quefazeres
urgentes, no auxílio oportuno aos nossos irmãos da Crosta, — comentou
o instrutor, com afabilidade e doçura, — e, na maior parte das vezes,
é mais eficiente o nosso concurso à noite, quando os raios solares diretos
não desintegram certos recursos de nossa cooperação…
2.
Não havia terminado, quando se acercou de nós, inesperadamente, uma
velhinha simpática.
— Justina, minha irmã, que o Senhor a abençoe! — Saudou-a o orientador, gentil.
2 A entidade amiga, que demonstrava
muita inquietude no olhar, respondeu com afetuoso respeito e explicou-se:
— Alexandre, tenho necessidade de seu auxílio urgente e vim ao seu encontro. Desculpe-me.
3 E, antes que o instrutor
pudesse sondar-lhe verbalmente a aflição, a interlocutora prosseguiu:
— Meu filho Antônio encontra-se em estado gravíssimo…
4 Agora era Alexandre que
a interrompia:
— Adivinho o que se passa. Quando o visitei, no mês findo, notei-lhe as perturbações circulatórias.
— Sim, sim, — continuou a mãe aflita. — Antônio vive no círculo de pensamentos
muito desregrados, apesar do bom coração. 5
E hoje trouxe para o leito de repouso tantas preocupações descabidas,
tanta angústia desnecessária, que as suas criações mentais se transformaram
em verdadeiras torturas. Embalde auxiliei-o com os meus humildes recursos;
infelizmente, é tão grande o seu desequilíbrio interior, que toda a
minha colaboração resultou inútil, permanecendo-lhe o cérebro sob a
ameaça dum derramamento mortífero.
6 E sentindo a gravidade do
minuto, acrescentava, triste:
— Ó Alexandre, bem sei que devemos subordinar nossos desejos aos desígnios de Deus. Entretanto, meu filho necessita de mais alguns dias na Terra. Creio que, em dois meses, conseguirei dele, indiretamente, a solução de todos os problemas que lhe afetam a paz da família. Sua autoridade pode auxiliar-nos! Seu coração edificado em Cristo permanece em condições de fazer-nos semelhante bem!…
7 Reconhecendo a urgência
do assunto, exclamou o orientador:
— A caminho! Não temos um segundo a perder! Daí a poucos instantes, penetramos na residência confortável. A velhinha, aflita, conduziu-nos a uma alcova espaçosa, onde o filho, chefe da casa, repousava metido em alvos lençóis, dando-me a impressão característica dum moribundo.
8 Antônio parecia próximo
dos setenta anos e exibia todos os sinais do arterioesclerótico adiantado.
O quadro era agora profundamente educativo para mim, que entrara num círculo valioso de observações novas.
9 Identificava perfeitamente
o estado pré-agônico, em todas as suas expressões físico-espirituais.
A alma confusa, inconsciente, movimentava-se com dificuldade, quase
que totalmente exteriorizada, junto do corpo imóvel, a respirar dificilmente.
10 Enquanto Alexandre se inclinava
paternalmente sobre ele, observei que estávamos diante de uma trombose
perigosíssima, por localizar-se numa das artérias que irrigam o córtex
motor do cérebro. A apoplexia não se fizera esperar. Mais alguns instantes
e a vítima estaria desencarnada.
11 Alexandre, que centralizara
todas as atenções no enfermo, tocou-lhe o cérebro perispiritual e falou
com autoridade serena:
— Antônio, mantenha-se vigilante! Nosso auxílio pede a sua cooperação!
12 O moribundo, desligado parcialmente
do corpo, abriu os olhos fora do invólucro de carne, dando a entender
vagas noções de consciência, e o instrutor prosseguiu:
— Você foi acidentado pelos próprios pensamentos em conflito injustificável. Suas preocupações excessivas criaram-lhe elementos de desorganização cerebral. Intensifique o desejo de retomar as células físicas, enquanto nos preparamos a fim de ajudá-lo. Este momento é decisivo para as suas necessidades.
13 O interpelado
não respondeu, mas observei que Antônio compreendera a advertência no
imo das forças da consciência, colocando-se em boa posição para colaborar
em favor de si mesmo.
14 Em seguida, o orientador
iniciou complicadas operações magnéticas, no corpo inanimado, ministrando
energias novas à espinha dorsal. Decorridos alguns instantes, colocou
a destra ao longo do fígado e, mais tarde, demorando-a no cérebro físico,
bem à altura da zona motora, chamou-me e disse:
3.
— André, mantenha-se em prece, cooperando conosco. Convocarei alguns
irmãos em serviço, nesta noite, para auxiliar-nos.
2 E acentuou, após meditar
por alguns segundos:
— O grupo do Irmão Francisco não pode estar longe.
3 Dito isto, Alexandre assumiu
atitude de profunda concentração do pensamento.
Não passou mais dum minuto e pequena expedição de oito entidades, quatro companheiros e quatro irmãs, penetrou o recinto doméstico, em religioso silêncio.
4 Saudamo-nos todos, ligeiramente,
e o instrutor dirigiu-se, atencioso, à entidade que guardava atribuições
de chefia.
— Francisco, precisamos aqui das emanações de algum dos nossos amigos encarnados, cujo veículo material esteja agora em repouso equilibrado.
5 E ao passo que o novo irmão
observava, cuidadoso, o agonizante, Alexandre acrescentava:
— Conforme observa, estamos diante dum caso gravíssimo. É preciso muito critério na escolha do doador de fluidos.
6 O dirigente dos socorristas
pensou um momento e obtemperou:
— Temos um companheiro que nos atenderá razoavelmente. Trata-se de Afonso. Enquanto vou buscá-lo, nosso grupo auxiliará sua ação curativa, emitindo forças de colaboração magnética, através da prece.
7 Francisco ausentou-se imediatamente.
Nesse instante, a velhinha aproximou-se do instrutor e falou, respeitosa:
— Se há necessidade de fluidos de irmãos encarnados, quem sabe poderíamos empregar o concurso de minhas netas que repousam nos aposentos próximos?
— Não, — respondeu Alexandre, delicado, — não atenderiam as exigências
em curso. Precisamos de alguém suficientemente equilibrado no campo
mental.
8 A mãe inquieta afastou-se,
enxugando os olhos.
Atendendo a sinal afetuoso do orientador, aproximei-me, observando o doente de mais perto, mantendo-me embora na íntima atitude de oração.
— Antônio é viúvo faz vinte anos, — explicou Alexandre, generoso, — e está nas
vésperas de vir ter conosco, no Plano espiritual. Nosso amigo, porém,
necessita de mais alguns dias na Esfera da Crosta para deixar alguns
problemas sérios devidamente solucionados. O Senhor nos concederá a
satisfação de colaborar no reerguimento provisório de suas forças.
9 E fosse porque me detinha
a observar o grupo de entidades que oravam, silenciosas, ou em razão
de pretender beneficiar-me com novos ensinamentos, o instrutor esclareceu:
— Temos aqui o grupo do Irmão Francisco. Trata-se de uma das inumeráveis turmas de serviço que nos prestam cooperação. Muitos companheiros consagram-se aos trabalhos dessa natureza, mormente à noite, quando as nossas atividades de auxílio podem ser mais intensas.
10 Verdadeiro mundo de interrogações
assomava-me ao cérebro, a fim de solucionar as questões do momento;
contudo, compreendendo a gravidade dos minutos, em face da tarefa para
a qual fôramos chamados, resolvi silenciar.
4.
Não decorreu muito tempo e Francisco voltava seguido de alguém. Tratava-se
do companheiro encarnado a que Alexandre se referira.
2 Não houve oportunidade para
saudações. O orientador, tomando-lhe a destra, conduziu-o imediatamente
à cabeceira do moribundo, dizendo-lhe com autoridade afetuosa:
— Afonso, não temos um segundo a perder. Coloque ambas as mãos na fronte do enfermo e conserve-se em oração.
3 O interpelado não pestanejou.
Dando-me a impressão dum veterano em semelhantes serviços de assistência,
parecia sumamente despreocupado de todos nós, fixando-se tão somente
na obrigação a cumprir.
4 Foi então que vi Alexandre
funcionar como verdadeiro magnetizador. Recordando meus antigos trabalhos
médicos nos casos extremos de transfusão de sangue, via-lhe perfeitamente
o esforço de transferir vigorosos fluidos de Afonso para o organismo
de Antônio, já moribundo.
5 Na qualidade de
discípulo, acentuando minhas faculdades de análise, junto de preciosa
lição, observei que o semblante do enfermo transformava-se gradualmente.
À medida que o instrutor movimentava as mãos sobre o cérebro de Antônio,
este revelava sinais crescentes de melhoras. 6
Verificava, sob forte assombro, que a sua forma perispiritual reunia-se
devagarinho à forma física, integrando-se, harmoniosamente, uma com
a outra, como se estivessem, de novo, em processo de reajustamento,
célula por célula.
7 Depois de um quarto de hora,
segundo meu cálculo de tempo, estava finda a laboriosa intervenção magnética
e Alexandre, chamando a velhinha, acentuou:
— Justina, o coágulo acaba de ser reabsorvido e conseguimos socorrer
a artéria com os nossos recursos, mas Antônio terá, no máximo, cinco
meses a mais, de permanência na Terra. 8
Se você pleiteou o auxílio de agora para ajudá-lo a resolver negócios
urgentes, não perca as oportunidades, porque os reparos deste instante
não perdurarão por mais de cento e cinquenta dias. 9
E não se esqueça de preveni-lo, pelos processos intuitivos ao nosso
alcance, quanto ao cuidado que deverá manter consigo mesmo no terreno
das preocupações excessivas, mormente à noite, quando ocorrem os fenômenos
desastrosos mais sérios de circulação, em vista da invigilância de muitas
pessoas que se valem das horas sagradas do repouso físico para a criação
de fantasmas cruéis, no campo vivo do pensamento. 10
Se o nosso amigo despreocupar-se da autocorrigenda, talvez desencarne
antes dos cinco meses. Toda a cautela é indispensável.
A genitora agradeceu, comovida, em lágrimas de contentamento.
11 Alexandre recomendou ao
“socorrista” encarnado retirasse as mãos de sobre a fronte do enfermo
e vi, então, o inesperado. O doente grave, reintegrado nas funções orgânicas,
com a harmonia possível, abriu os olhos físicos, como se estivesse profundamente
embriagado, e começou a gritar estentoricamente:
— Socorro! Socorro!… Acudam-me por amor de Deus! Eu morro, eu morro!…
12 Algumas jovens acorreram,
espantadas e trêmulas, em roupas brancas; percebendo-se que as filhas
carinhosas e sensíveis vinham atender ao pai ansioso.
— Papai! Papai! — Exclamavam, lacrimosas que foi isto?
— Estou morrendo! — Clamava o enfermo, em voz pungente, — chamem o médico…
Depressa!
— Mas que sente, papai? — Perguntou uma delas, em pranto convulso.
— Sinto-me morrer, tenho a cabeça tonta, incapaz de raciocinar…
13 Grande era a azáfama dos
encarnados que passavam por nós em bulha indescritível, atropelando-se
uns aos outros, sem o mais leve traço de consciência a respeito da nossa
presença ali.
Alexandre solicitou ao Irmão Francisco fornecesse instruções a Afonso para que este regressasse ao lar e, depois da providência, dispôs-se a retirar e disse-me sorrindo, diante da estranheza que a atitude alarmante das moças me causava:
— Geralmente, quando os nossos amigos encarnados gritam, chorosos, por socorro, nosso serviço de assistência já se encontra completo. Partamos.
14 O doente, semilúcido, prosseguia
inquieto, enquanto o telefone tilintava, cooperando na imediata
visita do médico.
A velhinha despediu-se de nós, comovedoramente, permanecendo junto do enfermo, velando, devotada e humilde.
5.
Na via pública, pedi ao instrutor me pusesse em contato mais íntimo
com o Irmão Francisco, que nos acompanhava, solícito.
Alexandre, afável como sempre, atendeu-me aos desejos.
2 — Nossa pequena expedição,
— esclareceu o chefe do agrupamento, depois de trocar comigo palavras
muito cordiais, — é uma das inumeráveis turmas de socorro que colaboram
nos Círculos da Crosta. Somos milhares de servidores, nessas condições,
ligados a diversas regiões espirituais mais elevadas.
3 — Seu núcleo, — perguntei,
— procede de nossa colônia?
— Sim. E temos nossas atividades entrelaçadas com as tarefas de vários instrutores de Nosso Lar. n
4 — E há tarefas especializadas
para cada grupo dessa natureza?
— Perfeitamente. O nosso, por exemplo, — acentuou Francisco, gentil,
— destina-se ao reconforto de doentes graves e agonizantes. 5
De modo geral, as condições de luta para os enfermos são mais difíceis
à noite. Os raios solares, nas horas diurnas, destroem grande parte
das criações mentais inferiores dos doentes em estado melindroso, não
acontecendo o mesmo à noite, quando o magnetismo lunar favorece as criações
de qualquer espécie, boas ou más. 6
Em vista disso, o nosso esforço há de ser vigilante. Quase ninguém no
Círculo de nossos irmãos encarnados conhece a extensão de nossas tarefas
de socorro. Permanecem eles num campo de vibrações muito diferentes
das nossas e não podem apreender ou discriminar nosso auxílio. 7
Isto, porém, não importa. Outros benfeitores, muito mais elevados que
aqueles dos quais podemos guardar conhecimento direto, velam por nós
e inspiram-nos, devotadamente, no campo das obrigações comuns, sem que
vejamos a sua forma de expressão nos trabalhos referentes aos divinos
desígnios.
8 E talvez porque eu sorrisse,
admirando-lhe o ideal de renúncia serena e santificante, o interlocutor
também sorriu e acrescentou:
— Sim, meu amigo, reclamar compreensão e resultado de criaturas e situações, ainda incapacitadas para no-los dar, constitui exigência mais cruel que a solicitação de recompensas imediatas.
9 Era bem a verdade
convincente. Mantinha-se o Irmão Francisco dentro da lógica mais elevada.
Os que auxiliam alguém, interessados no reconhecimento ou na compensação,
quase sempre permanecem de olhos cerrados para o concurso divino e invisível
que de Mais Alto recebem. 10
Exigem que outros lhes identifiquem a posição de benfeitores, mas nunca
se recordam de que amigos sábios e desvelados lhes oferecem a melhor
cooperação de Planos superiores, sem deles reclamarem a mínima nota
de gratidão pessoal.
11 — São muitos
os irmãos afins, — continuou o meu interlocutor, interrompendo-me as
reflexões íntimas, — que se reúnem, depois da morte do corpo, em tarefas
de amparo fraternal, quando já alcançaram os primeiros degraus da escada
de purificação. 12
Do que me é possível ajuizar, semelhantes trabalhos são dos mais eficientes
e dignos, em favor dos homens. Raramente os companheiros encarnados,
quando em excelentes condições de saúde física, podem compreender as
aflições dos enfermos em posição desesperadora ou dos moribundos prestes
a partir. 13 Nós
outros, porém, no quadro de realidades mais fortes, sabemos que, muitas
vezes, é possível efetuar realizações deveras sublimes, de natureza
espiritual, em poucos dias, nessas circunstâncias, depois de largos
anos de atividades inúteis. 14
No leito da morte, as criaturas são mais humanas e mais doces. Dir-se-ia
que a moléstia intransigente enfraquece os instintos mais baixos, atenua
as labaredas mais vivas das paixões inferiores, desanimaliza a alma,
abrindo-lhe, em torno, interstícios abençoados por onde penetra infinita
luz. 15 E a dor vai
derrubando as pesadas muralhas da indiferença, do egoísmo cristalizado
e do amor-próprio excessivo. Então, é possível o grande entendimento.
16 Lições admiráveis
felicitam a criatura que, palidamente embora, percebe a grandeza da
herança divina. Acentua-se-lhe o heroísmo e gravam-se-lhe no coração,
para sempre, mensagens vivas de amor e sabedoria. 17
Na noite espessa da agonia começa a brilhar a aurora da vida eterna.
E aos seus clarões indistintos, nossos princípios são facilmente aceitos,
a sensibilidade demonstra características sublimes e a luz imortal lança
fontes de infinito poder nos recessos do espírito.
18 O interlocutor fez longa
pausa e rematou:
— Desse modo, conseguimos efetuar um serviço de assistência eficaz, carreando
novos valores no campo da fraternidade e do bem legítimo. 19
Nunca observou a paciência inesperada de doentes graves, a calma de
certos enfermos incuráveis e a suprema conformação da maioria dos moribundos?
Muitas vezes, semelhantes edificações, incompreensíveis para os encarnados
que os cercam, constituem o fruto do esforço de nossos grupos itinerantes
de socorro.
20 Francisco enunciara sublimes
verdades. De fato, a serenidade dos enfermos em condição desesperadora
e a resignação inexplicável dos agonizantes, absolutamente distanciados
da fé religiosa, não poderiam guardar outra origem. A bondade divina
é infinita e, em todos os lugares, há sempre generosas manifestações
da Providência Paternal de Deus, confortando os tristes, acalmando os
desesperados, socorrendo os ignorantes e abençoando os infelizes.
André Luiz
[1] Colônia de que trata o primeiro livro de André Luiz, com esse mesmo nome — Nosso Lar — obra publicada pela mesma editora. (Nota da editora.)