1 Sou trazida a narrar-vos triste episódio de minha derradeira experiência no mundo.
Onde, porém, as palavras que me possam exprimir a desolação?
Ainda assim, amigos espirituais asseveram que devo falar às mães, e obedeço…
2 A Providência Divina honrou-me o coração, concedendo-me um lar na Terra, mas, dentro dele, era eu a irritação em movimento.
Nunca cheguei a examinar minha cegueira de espírito. Em minha inquietação e egoísmo, dedicava-me a descobrir as faltas alheias. Respirando, entre a maledicência e a desconfiança, notava golpes nos mínimos gestos de amizade espontânea.
3 O próprio tempo não escapava. Toda temperatura, no curso de cada dia, me encontrava despejando condenação:
— A chuva ensopa…
— O calor asfixia…
— Vento de peste…
— Melhor que o frio nos mate a todos…
4 Qualquer bagatela me arrancava blasfêmias:
— Deus não me atende!…
— Não oro mais…
— Porque não morri, na hora do nascimento?
— De todas as mulheres, sou a mais infeliz…
Alimentando a ira por vício, estimava que os outros me acreditassem enferma, sem perceber que me transformava, a pouco e pouco, em fera humana, sob a jaula da pele.
5 Se meu esposo, leal e amigo, surgia calmo, esbravejava contra ele, acusando-o de inerte; se ponderava quanto a despesas desnecessárias, chamava-lhe, de imediato, unha-de-fome; se me estendia alguma dádiva menos cara, interpretava-lhe a gentileza por sovinice; se me ofertava uma lembrança de preço, queixava-me da mesma forma, gritando-lhe em rosto que ele nunca passara de um mané gastador…
6 Foi nessa disposição insensata que me ergui, excitada, no dia terrível da provação.
Às sete da manhã, acordei meu filhinho de oito anos para as lides da escola e escutei-o a choramingar:
— Estou doente, mãezinha, hoje quero ficar com a senhora, não posso sair, tenho dor de cabeça…
7 Precipitada, frenética, não me contive e bradei:
— Preguiçoso! Trate de levantar-se! Doente com essa cara! Era só o que faltava… Chega o que sofro!.
— Mãezinha, deixe que eu fique! Hoje só…
— Levante-se, levante-se, menino!
8 Transtornada, sentei-o à força.
Ordenei-lhe que se calçasse, ao que se opôs, pedindo, suplicante:
— Mamãe, não me deixe ir!… Hoje só…
9 Encolerizada, tomei de um dos seus sapatos, colocando-o no pé, com a violência de quem espanca, e ouvi-o clamar em altos gemidos:
— Ai! ai, mãezinha!… um espinho, um espinho!…
10 Sujeitei-o, com mais energia, ao calçado, alegando, arbitrária:
— Malandro, não me venha com mentiras! Escola ou surra!…
11 Nisso, porém, meu filhinho empalideceu e desmaiou… Retirei o sapato e vi que um escorpião, escondido no fundo, lhe descarregara todo o veneno…
12 Ó Deus de Infinita Bondade, tu que foste imensamente piedoso para confiar um anjo a uma leoa, porque não eliminaste a leoa para que o anjo conseguisse viver?!…
13 O que se passou, alcança o indescritível. Apesar de toda a medicação, em breve tempo minha ternura, que a dor desentranhara ao rebentar-me o coração de pedra, apertava simplesmente um cadáver miúdo, de encontro ao peito…
14 As horas no relógio continuaram as mesmas; entretanto, de minha parte, não mais me reconheci.
15 “Ai! ai, mãezinha!… um espinho, um espinho!…” Aquelas palavras gemidas cresceram em minha alma. Jamais o equilíbrio, não mais a esperança. Minha cabeça encaneceu, meu pensamento destrambelhou… Chorei até que meus olhos parassem, alucinados, na noite da loucura; acusei-me, até que o manicômio me asilasse e até que o manicômio me escondesse, piedoso, o agoniado transe da morte!…
16 Desencarnada, encontrei a mim própria, dementada, atormentada, arrependida, padecente… Amparada por benditos mensageiros da caridade, tenho recolhido o consolo de vários círculos consagrados à prece.
17 Dizem que os supostos mortos devem falar às criaturas em aprendizado na Terra, para que as criaturas da Terra lhes aproveitem o aprendizado. Será talvez por isso que, hoje, algo reanimada para abraçar o trabalho reeducativo que me espera, estou sustentada por benfeitores, entre os vossos ouvidos, não somente para rogar-vos um pensamento de auxílio, mas também para repetir às irmãs, a quem Deus confiou as alegrias do lar:
18 — Mães que pisais no mundo, compadecei-vos de vossos filhos!… Corrigi, amando! Ensinai, servindo! À frente de qualquer dificuldade, conservai a paciência e cultivai a oração!…
Dulce