1 “Por que, meu Deus, a carne inda me prende,
Por que me arrasto como um triste duende,
Em miserabilíssimos despojos?…
Era o ser encarnado que falava,
Amarguradas queixas da alma escrava,
No mais horrendo dos martirológios.
2 “— Como pude descer nos labirintos,
Onde os lobos vorazes dos instintos
Nos consomem nos dentes de esfaimados,
E por que idealizando puros gozos,
Busco na carne abismos tenebrosos,
Abominando todos os pecados?”
3 “Sou no mundo um fantasma solitário,
Só porque, um dia, um espermatozoário
Uniu-se, ansioso, ao óvulo fecundo.
E emergindo das ânsias e dos partos,
Suguei, unindo a boca a uns seios fartos,
Substâncias misérrimas do mundo…”
4 “Desde esse dia tormentoso e aflito
De intensa dor, envergo o sambenito
De matérias iguais aos polipeiros,
Entre as disposições hereditárias,
Chorando as mesmas dores milenárias
Dos que gemeram nestes cativeiros!…”
5 Nada, contudo, lhe respondeu, de perto…
A alma, porém, sozinha, no deserto,
Viu sobre o mundo um monte de destroços;
Sentiu, no Além, a vida verdadeira,
Mas contemplando, pela Terra inteira,
A carne infame, chocalhando os ossos!…
Augusto dos Anjos
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