1 No extremo limite da Terra com o Céu, aportou um peregrino envolto em nevado manto. Irradiava pureza e brandura. A fronte denunciava-lhe a nobreza, pelos raios diamantinos que emitia em todas as direções. Extenso halo de luz assinalava-lhe a presença.
2 Recebido pela entidade angélica, que presidia à importante passagem, apresentou sua aspiração máxima: ingressar definitivamente no paraíso, gozar-lhe o descanso beatífico.
3 O divino funcionário, embora admirado e reverente perante Espírito tão puro, esboçou o gesto de quem notava alguma falha menos visível ao olhar inexperiente e considerou:
— Meu irmão, rendo homenagem à alvura de tuas vestes, entretanto, vejamos se já adquiriste a virtude perfeita.
4 Sorridente, feliz, o viajor vitorioso pôs-se à escuta.
— Conseguiste entesourar o amor sublime? — Perguntou o anjo, respeitoso.
— Graças a Deus! — Informou o interpelado.
5 — Edificaste a humildade?
— Sim.
6 — Guardaste a esperança fiel?
— Todos os dias.
7 — Seguiste o bem?
— Invariavelmente.
8 — Cultivaste a pureza?
— Com zelo extremado.
10 — Exemplificaste o trabalho construtivo?
— Diariamente.
11 — Sustentaste a fé?
— Confiei no Divino Poder, acima de tudo.
12 — Ensinaste a verdade e testemunhaste-a?
— Com todas as minhas forças.
13 — Conservaste a paciência?
— Sem perdê-la jamais.
14 — Combateste os vícios em ti mesmo, tais como a vaidade e o orgulho, o egoísmo e o ciúme, a teimosia e a discórdia?
— Esmeradamente.
15 — Guerreaste os males que assolam a vida, como sejam o ódio e a perversidade, a insensatez e a ignorância, a brutalidade e a estupidez?
— Sempre.
16 O anjo interrompeu-se, refletiu longos minutos, como se estivesse em face de grave enigma, e indagou:
— Meu amigo, já trabalhaste no inferno?
— Ah! isto não! — Respondeu o peregrino, escandalizado. — Como haveria de ser?
17 O fiscal da celeste alfândega sorriu, a seu turno, e observou:
— Falta-te semelhante realização para subir mais alto.
— Oh! que contrassenso! — Aventurou o interessado, — como servir entre gênios satânicos, de olhos conturbados pela permanente malícia, de ouvidos atormentados pela gritaria, de mãos atadas pelos impedimentos do mal soberano, de pés cambaleantes sobre o terreno inseguro, com todas as potências da alma perturbadas pelas tentações?
18 — Sim, meu amigo, — acentuou o preposto divino, — o bem é para salvar o mal, o amor foi criado para que amemos, a sabedoria se destina, em primeiro lugar, ao ignorante. A maior missão da virtude é eliminar o vício e amparar o viciado. Por isto mesmo, o Céu não perde o inferno de vista…
19 E, perante o assombro do ouvinte, rematou:
— Torna à Terra, desce ao inferno que o homem criou e serve ao Senhor Supremo, voltando depois… Então, cogitaremos da travessia. Lembra-te de que o Sol, situado cerca de cento e cinquenta milhões de quilômetros além do teu mundo, lança raios luminosos e salvadores ao mais profundo abismo planetário…
20 Em seguida, o controlador da Porta Celestial cerrou a passagem ligeiramente entreaberta e o peregrino, de capa lirial, espantadiço e desapontado, sentou-se um pouco, a fim de meditar sobre as conquistas que havia feito.
Irmão X
(Humberto de Campos)