1 Querida mamãe, meu querido pai, queridos irmãos, devo lembrar a paternidade divina e pedir a Deus que nos abençoe.
2 Mãezinha Lourdes, não sei bem como expressar a emoção no papel. A emoção que me possui de improviso. 3 Somente agora, vejo que escrever é como transmitir o que vai por dentro de nós, principalmente, quando fazemos isso de uma vida para outra. Nunca pensei que me veria aqui, numa experiência dessas. 4 É o tio Manoel que me auxilia desde as primeiras horas em que readquiri a consciência de mim mesmo, ampara o meu pensamento e a minha mão, para que eu me manifeste no mínimo de tempo. Sou assim impelido a escrever de corrida, eu que estimava pensar muito, antes de fazer quaisquer anotações.
5 Mas a carta de um filho abraçando os pais queridos não é uma página da imprensa. É o coração que se estampa nas linhas que se sucedem umas às outras, à feição de nossos confidentes para falarem de minha vida nova.
6 Não lhes posso dizer que sofro, embora a falta de casa ainda seja em mim um problema a resolver. Tenho, entretanto, a companhia do tio Manoel, do irmão Ribeiro que andou em nossa família envergando a posição de parente da mamãe e a vovó Ana, que me ajudam como se eu fosse ainda uma criança. 7 Ao lado de outros amigos, eles me recomendam solicitar à mãezinha para que não chore mais assim, com tanto fel no sentimento, e nem incrimine os médicos de Caraguatatuba, que me socorreram carinhosamente.
8 Mamãe, quero dizer à senhora e ao papai que o vento naquele dia, 6 de junho, era de um poder fulminante; tentei frear a máquina ou acomodá-la em outro sítio, mas a força do furacão era dessas que arrancam árvores centenárias pela raiz. Seguia calmo pela estrada de Ubatuba, pensando em distração nas férias, quando a calamidade desabou. Parecia que eu e a máquina estávamos sendo sugados por um vulcão aéreo.
9 Seria impossível sobreviver no corpo, de vez que senti a cabeça quase a quebrar-se. 10 Não dormi, nem desmaiei de arranco, pois fiquei como que paralisado na forma física, sem conseguir movimentar um dedo. 11 Nada via, mas ouvia todos os rumores em derredor de mim. Meu cérebro, ainda verde, se recusava a entregar-se; no íntimo, eu rezava e pedia a Deus que me desse vida para chegar em nossa casa e tratar-me como se fazia preciso.
12 Nessa situação, percebi que me transportavam para lugar desconhecido, de vez que meus olhos se haviam apagado. Não sei quantas pessoas me atenderam, porque aquele não era um momento em que meu raciocínio quisesse pesquisar isso ou aquilo e, sim, um minuto de aflição em que agradeceria qualquer socorro, viesse donde viesse.
13 Notei que as mãos do médico pousaram sobre minha cabeça e, para defendê-lo, posso dizer-lhes que guardei de memória o que ele falou em voz alta: — Meu Deus — disse ele — tantas vidas jovens desaparecendo. Este garoto poderia ser para mim um irmão ou um filho…
14 Não me lembro de outras frases porque minha cabeça estava inerte e dolorida e meu impulso se dirigia para o socorro que ansiava por receber.
15 Acontece, mãezinha, que outras mãos me afagaram e um sono profundo me tomou todas as energias. Era um pesadelo em que me via regressando para casa, a ouvir-lhe os gritos de dor. Tudo me parecia nebuloso, incompreensível. Assim estive por muito tempo.
16 Imaginem a senhora e meu pai, que ainda esperei pela vinda da vovó Ana para despertar. Ela veio depois, mas em condições diferentes. Vivera a existência das mães abençoadas pelo trabalho e pela renúncia no lar e não teve qualquer dificuldade para retomar-se aqui.
17 O trauma que sofri foi bastante longo, não sei precisar de quantos meses. Ainda me vejo na posição de um convalescente que muito pouco a pouco se refaz no domínio das próprias forças. Quando acordei totalmente, vendo a vovó Ana ao meu lado, respirei com alívio. Acreditei que voltara ao nosso ambiente e chamei por vocês todos.
18 Minha avó, que me foi também mãe pelo coração, me comunicou que estivera muito saudosa e viera ver-me. Os amigos e parentes nossos procuraram dosar a verdade para que eu não caísse outra vez em nova perturbação. 19 Muito devagar, ela contou-me que estávamos em outras faixas da vida. Comecei a chorar e bastou que a dor me acudisse ao pensamento para ver a senhora, mamãe, chamando por mim, para escutar a Carmem, para registrar o que diziam meu pai e meus irmãos.
20 Eu não queria morrer e, por isso, contrariava-me a realidade que me buscava. Mas isso foi só no princípio, porque logo após, comecei a recordar que a senhora nos ensinava em casa a confiar em Deus e procurei renovar-me na oração.
21 Mamãe, a saudade, porém, é tão grande que não sei explicar. Entretanto, embora saudoso, venho pedir a sua paz, a fim de que me tranquilize.
22 Mãezinha, veja como precisamos de você em casa: olhe o Serginho, necessitando de sua proteção e do seu amor. Não chore mais, a ponto de adoecer por minha causa. A senhora e papai sabem que eu era aí um rapaz que amava o dever bem cumprindo. 23 Também eu pensava que me casaria mais tarde, que haveria de ter um lar em que meus pais descansassem, assim como me haviam doado tanto carinho e tanto repouso em criança. Mas as leis de Deus funcionam acima de nós. 24 Se aquele vento deveria arrebatar-me à estrada e arrasar comigo, isso tem sua razão de ser. Ainda não tenho crânio para penetrar nesse assunto do passado, porque tudo em mim se restaura muito lentamente; mas já sei o bastante para não reclamar.
25 Rogo-lhe orar por nós todos, incluindo-me em suas preces. À medida que o seu pensamento se desanuvie, o meu igualmente melhorará. 26 Os filhos aqui não se desvinculam tão depressa dos pais que amam. Parece-me que um laço, numa espécie de cordão, me liga ainda ao seu coração, como nos tempos de meninice quando a buscava para deslanchar-me de qualquer susto.
27 Sei que o papai tem sofrido muito, mas faz-se de forte para não aumentar a nossa fraqueza. Pois hoje, mãezinha, venho pedir-lhe calma e aceitação das leis de Deus.
28 Não conserve mágoas de ninguém. Não houve culpa em pessoa alguma no caso de seu filho.
29 Pense nos médicos de Caraguá, abençoando a todos. Ore por eles mamãe, para que Deus os recompense pelo bem que me fizeram. E ajude-me com lembranças iluminadas de fé. Não permita que as lágrimas lhe venham aos olhos, senão para agradecer a Deus as bênçãos que temos recebido.
30 Um abraço ao Sérgio e a todos de casa. Não posso prolongar a escrita, porque o tio Manoel me diz que o nosso horário está esgotado.
31 Papai, querida mamãe, perdoem-me se ainda não lhes posso falar com mais calor e alegria. Por enquanto, saibam que se choram eu não consigo fazer outra coisa.
32 Vamos refletir nos outros rapazes que perdem o corpo sem carro, naqueles outros que estão doentes e aceitam o desafio da noite, com febre, nas calçadas, nos que fugiram de casa e foram colhidos pelos tóxicos que os enlouquecem, nos que desejam estudar e estão escravizados à penúria e naqueles muitos que acordam de manhã buscando o serviço pesado com o estômago vazio. Aliviar as necessidades e sofrimentos dos outros, será descarregar pesados fardos que ainda trazemos.
33 Papai e mamãe, a todos os nossos corações queridos, num abraço do coração, ao mesmo tempo que lhes peço receberem todo o carinho e toda a gratidão do filho que pede a Deus recompensá-los por toda a proteção que me dispensaram e por todo o amor com que me sustentaram a vida, sempre o filho reconhecido, que lhes pede a bênção e lhes beija as mãos, misturando o amor e a saudade, nesse mesmo beijo de alegria e esperança, carinho e agradecimento,
Marco
COMENTÁRIOS
Ao se falar de um filho, de desejos, de sonhos acalentados, estamos unindo-os a único sentimento — o Amor.
Em Lourdes Ribeiro Fernandes, mãe, revivescia o quadro da morte de que seu filho fora vítima, refletindo como teriam sido os primeiros socorros médicos.
Marco Antônio trouxe-lhe o esclarecimento:
“Notei que as mãos do médico pousaram sobre minha cabeça e, para defende-lo, posso dizer lhes que guardei de memória o que falou em voz alta: Meu Deus, disse ele. — tantas vidas jovens desaparecendo. Este garoto poderia ser para mim um irmão ou um filho…”
Lourdes Ribeiro voltou a Ubatuba-Caraguatatuba e confirmou a veracidade da notícia e a confirmação de semelhantes palavras.
PESSOAS E FATOS
Marco Antônio Peres Fernandes: Nascimento: 18.9.1954. Desencarnação: 6.6.1976.
Pais: José Peres Fernandes e Lourdes Ribeiro Fernandes — Rua Cássio de Almeida, 304 — Vila Guilherme, São Paulo — SP.
Irmão: Carmem Peres Fernandes Rodrigues.
Avó: Ana Fernandes, paterna, desencarnada.
Avô: Irmão Ribeiro — João Ribeiro, materno.
Tio Manoel — Manoel Fernandes, paterno.
Sobrinho: Serginho — Sérgio Peres Fernandes.
Rubens S. Germinhasi