1 Ao lado de João Firpo, desencarnado ao impacto do fogo que lhe devorara a casa velha, numa noite de expiação e de assombro, estava a carta, datada por ele quatro dias antes, endereçada a um irmão e que o morto evidentemente deitaria ao correio, na primeira oportunidade.
2 Enquanto bombeiros improvisados lhe retiravam o corpo inerte e benfeitores da Vida Maior lhe amparavam o Espírito liberto em doloroso trauma, copiei a curiosa missiva que revoava nas cinzas da tragédia, a fim de transmiti-la, com objetivos de estudo e meditação, aos companheiros do mundo.
Eis, assim, na íntegra, o valioso documento:
3 “Meu caro Didito:
Espero que estas linhas encontrem você com saúde e paz, junto dos nossos.
4 Graças a Deus, estou bem. Você se afligiu à-toa com a notícia de meu resfriado. Tudo não passou de um defluxo de brincadeira. Estou mais forte que a peroba do Brejo Grande, comendo por quatro caboclos na roça. Seja velho quem quiser. Com os meus sessenta e sete janeiros, não passo sem banho no rio e tutu no prato. Moro sozinho porque não nasci para confusão. Dona Belinha vem diariamente fazer-me as refeições, assear a casa e isso chega.
5 Sobre o caso do sonho que você teve comigo, conforme seu conselho fui à reunião espírita no sítio do Totonho. A mulher dele é médium de verdade. Há muito tempo eu não assistia a uma incorporação tão perfeita. Realmente, mãe falou por ela. Não tenho dúvida. Aquela voz boa e cansada que nós dois não esquecemos. Coitada de mãe! Está preocupada comigo, não sei porquê. Falou muito sobre a morte, coisa em que não penso. Fiz todos os exames de saúde que o médico recomendou, no mês passado, e tudo deu certo. Positivo. Por outro lado, não viajo. Porque será que a velha mostrou medo de que eu venha a bater a pacuera, de um momento para outro?
6 Imagine que ela abordou um segredo. Disse coisa séria quanto ao dinheiro que venho guardando para a formação do nosso lar de velhinhos, compromisso antigo. Avalie você que mãe conversou, conversou e, depois, me pediu empregar enorme importância na compra do terreno para a obra, aconselhando-me colocar a parte restante com amigos responsáveis para o custeio da construção. 7 Considere o meu aperto. Que é que há? Não é fácil entregar assim de mão beijada quase todas as minhas economias de trinta anos. Concordo com a providência, pois temos nosso projeto e promessa há mais de vinte anos. Não negarei os cobres, mas preciso de um mês para pensar. Terrenos e amigos já estão apalavrados, desde o nosso encontro aqui, há tempos, mas dinheiro, meu caro!… Não posso aceitar o negócio, assim do pé para a mão. 8 Você sabe que a velha sempre foi aflita. Quando queria uma coisa, queria mesmo. Tenho conservado minhas economias com cautela. Não confio em bancos e em mãos dos outros, a grana começa prometendo bons juros e depois cria pernas para correr e cair no buraco. É impossível tratar de problema assim tão grave, sem prazo para refletir. Disse mãe que já tive muito tempo para resolver, mas eu não acho. Comunico a você que não recusarei a doação; entretanto, o assunto não é sangria desatada. No mês que vem, cuidaremos de tudo.
Sem mais, venha, logo que possa, comer de nosso feijão bravo e receba um abração do mano,
Firpo.”
9 Esta era a carta que o rico desencarnado tinha escrito e aguardava ensejo para mandar.
O Plano Espiritual lhe havia dado, cinco dias antes, um aviso urgente para a felicidade dele próprio. João, no entanto, exigia prazo a fim de atender. Acontece, porém, que a provação não conseguira esperar.
Um incêndio de grandes proporções no madeiramento da pequena moradia lavrara, noite alta, obrigando-o a largar o corpo sufocado sem remissão.
10 O dinheiro a que se referira, com tanto carinho, decerto jazeria ali, inteiramente queimado, porque metal não havia.
De interessante nos escombros, apenas a carta que nos pareceu um recado precioso, lançado pelo livro da vida, sobre um monte de pó.
Irmão X
(Humberto de Campos)