Francisco Cândido Xavier
Envio-lhe o soneto que nos foi dado pelo poeta Cruz e Souza, muito lembrado por nós, num grupo de amigos, na véspera da sessão em que nos visitou. Alguns companheiros, entre eles senhoras da Guanabara, falavam sobre a possibilidade de recebermos mediunicamente uma página do poeta.
Um dos participantes da nossa conversação expressava o desejo de obter de Cruz e Souza algumas palavras de bom ânimo, em vista dos tropeços que vem atravessando na seara da fé, ante o trabalho de fraternidade que lhe foi confiado. No dia seguinte as nossas irmãs do Rio nos convidaram para ligeiro culto de oração. Para centralizar os pensamentos na prece, recorremos à leitura de O Evangelho Segundo o Espiritismo ( † ) que nos ofereceu o item 15 do capítulo XVIII para meditação.
Ao término do nosso ligeiro encontro espiritual, o nosso amigo Cruz e Souza veio até nós e deu-nos o soneto evidentemente dedicado em espírito ao amigo que esperava por ele. Sentindo que esse apelo nos serve a todos, passamo-lo às suas mãos.
Cruz e Souza
1 Companheiro da Terra!… Companheiro,
Não te doa servir no solo obscuro,
Resguarda o sonho luminoso e puro
Sob os clarões do júbilo primeiro…
2 Vara lama, canícula, aguaceiro,
Vence o caminho áspero e inseguro,
Plantando o Bem nas leiras do Futuro,
O trigo excelso do imortal celeiro!…
3 Sofre, mas segue além das próprias dores,
Sê bondade e perdão por onde fores,
Olvida em prece o espanto que te invade.
4 Serve, tropeça, ergue-te e confia,
E encontrarás as fontes da alegria
Nas colheitas de luz da Eternidade.
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Irmão Saulo
Fala a voz da experiência neste soneto de Cruz e Souza.
Quem conhece a vida do poeta facilmente o reconhece nestas estrofes.
Negro e pobre, arredio, fugindo às glórias ilusórias da Terra, sofreu na carne as provas
do exílio e morreu tuberculoso. Seu talento fulgurante e sua poesia exponencial
só foram reconhecidos depois da sua morte. Era o poeta maior do nosso Simbolismo e
não o reconheceram em vida. Ele mesmo se retratou no soneto “Vida Obscura”, como
se vê no seu primeiro quarteto:
“Ninguém sentiu o teu espasmo obscuro,
Ó ser humilde entre os humildes seres.
Embriagado, tonto de prazeres,
O mundo para ti foi negro e duro.”
No soneto “Assim seja”, escrito em vida, como o acima citado, Cruz e Souza já dava conselhos semelhantes aos que agora envia ao companheiro que lhe suplica palavras de bom ânimo. Vejamos o seu último terceto:
“Morre com o teu Dever. Na alta confiança
De quem triunfou e sabe que descansa
Desdenhando de toda a Recompensa!”
Setenta e seis anos após a sua morte o poeta nos envia sonetos que o identificam pelo estilo, a temática e a posição pessoal diante do mundo e da vida. Os céticos perguntam se ele não teria evoluído, se não devia estar compondo em ritmo moderno. Se procedesse assim, como identificar-se? Nesse caso os céticos diriam: “Isso não é Cruz e Souza!”
O Espírito volta, pelo pensamento, às posições antigas, reencontra o tempo perdido e nele se reintegra para nos dar a sua ficha de identidade. “Livre da matéria escrava”, como ele mesmo escreveu em vida no soneto “Livre”, o poeta se torna senhor do tempo que não é mais irreversível como lhe parecia na Terra. A experiência da sua própria dor então lhe serve para socorrer os que ainda sofrem no exílio. E ensina os que padecem a transformar o lodo em astros, como já antevira no soneto “Clamor Supremo” que nos deixou na sua poética terrena.
O problema da poesia mediúnica não é de crença, de aceitação pacífica e ingênua. Só podemos legitimar a mensagem poética através da crítica. O poeta se identifica pelo que ele era quando vivo e não pelo que ele devia ser. Toda a poética psicográfica de Chico Xavier (e toda a sua prosa) é marcada pelo selo dos autores espirituais. Este soneto de Cruz e Souza, como se vê, não pode ser atribuído a nenhum outro poeta. Traz o cunho do grande simbolista em todas as suas facetas.