Entre as grandes provações que afligem a humanidade, a prova da cegueira é uma das mais dolorosas. O cego possui apenas o mundo interior e um tato altamente desenvolvido, uma das compensações dadas por Deus que é vedada aos videntes. Os cegos sentem o aroma das flores e dos frutos, a brisa do mar e o calor do sol, sentem as diferentes sensações que a natureza oferece, porém não podem contemplar a constelação estelar, nem um raio de luar, o mundo das cores e das formas a não ser pelo contato e pela sensibilidade grandemente desenvolvidos.
O cego, porém, no seu mundo, é feliz, um ser humano como outro qualquer. O que é necessário é que os videntes transformem a piedade em ajuda prática, encarando-os como criaturas capacitadas para viver e ser feliz, tanto quanto o vidente.
No Brasil, quatro extraordinárias mulheres dedicaram-se ao bem-estar dos cegos, de alma e coração, realizando trabalho pioneiro pelo alfabeto Braille, transcrevendo para esse sistema inúmeros livros, alfabetizando cegos e videntes, qual verdadeiras sacerdotisas do bem. Foram elas: D. Engrácia Ferreira, D. Júlia Pêgo de Amorim, D. Benedita Mello e D. Balbina de Moraes, pioneiríssimas na transcrição do livro espírita em Braille. É de D. Júlia Pêgo de Amorim que vamos falar nesta despretensiosa minibiografia.
D. Júlia Pêgo de Amorim nasceu no Rio de Janeiro, quando ainda capital do Império, no dia 15 de setembro de 1879, sendo primogênita do Marechal Antonio José Maria Pêgo Junior e de D. Júlia Amália da Silva Pêgo. Em 1894, terminava o curso primário, sendo matriculada na antiga Escola Normal do Distrito Federal, onde diplomou-se em professora primária no ano de 1898, quando foi designada professora-adjunta para a Escola Basílio da Gama. Posteriormente, ocupou o cargo de diretora de Música da Escola Normal. Estagiou na Escola Benjamin Constant e foi nomeada diretora da Escola de São Cristóvão, então 6º Distrito Escolar. Contraiu núpcias com o Dr. Aurélio de Amorim no dia 28 de outubro de 1899. O seu esposo era oficial do Exército, gozando grande prestígio na política do Rio de Janeiro. Concorreu às eleições e foi eleito deputado federal pelo seu Estado natal, o Amazonas. Desse matrimônio, nasceram seis filhos: Maria, Aurélia, Armando, Aramis, Mário e Iacy. Visando o conforto e o bem-estar da grande amada, Dr. Aurélio alugou o antigo solar do Barão do Amparo, no Alto da Boa Vista.
Notando a ausência de escolas naquela localidade, D. Júlia empenhou-se junto à Prefeitura Municipal para que ali se fundasse uma. De acordo com o jovem esposo, cedeu uma das salas do solar para que funcionasse a primeira escola do Alto da Boa Vista e da qual foi nomeada diretora.
Diante da afluência de alunos, a Prefeitura do Distrito Federal fez construir, mais tarde, a Escola Primária Menezes Vieira, ainda hoje existente no populoso bairro. Em 1915, é nomeada diretora da Escola José de Alencar, próxima do Largo do Machado, dirigindo esse estabelecimento de ensino até 22 de outubro de 1919, quando foi jubilada no cargo de catedrática. Sempre pensando em ser útil, tornou-se, mais tarde, o expoente máximo da dedicação aos cegos.
No dia 21 de abril de 1937, desencarna, no Rio de Janeiro, sua tia D. Engrácia Ferreira, veterana cultora do Braille, que, em vida, manteve permanente campanha para o bem-estar dos cegos. D. Engrácia foi abnegada seareira espírita, pioneira da transcrição do livro espírita para o Braille. Por várias vezes, animou a sua sobrinha para essa meritória tarefa. Menos de um mês da sua desencarnação, no dia 6 de maio de 1937, comunica-se por intermédio de Chico Xavier, dando uma mensagem dirigida à D. Júlia Pêgo de Amorim, na cidade de Pedro Leopoldo (MG). Onze dias depois, Chico Xavier recebe a segunda mensagem pelo sistema Braille, cuja mensagem foi publicada no “Reformador” do mês de junho de 1938, às páginas 172-175. Em 16 de novembro de 1938, transmite a terceira mensagem dirigida à D. Júlia, sugerindo que transpusesse para o Braille determinado dicionário de Português e, nesse mesmo ano, veio a quarta mensagem, dando provas incontestes de sua identidade. D. Engrácia Ferreira deixou várias obras transcritas para o Braille e uma por terminar.
D. Júlia Pêgo de Amorim, pegando certo dia nas páginas escritas dessa obra inacabada, imaginou terminá-la e o seu desejo se materializou de tal forma que aprendeu sozinha o alfabeto Braille, copiando letra por letra. Certificando-se de que estava certo, prosseguiu e tirou a prova, solicitando a um cego que lesse o que estava escrito. Satisfeita com o resultado, em pouco tempo estava senhora do assunto, transformando-se numa verdadeira missionária.
Em 1938, reuniu em sua casa pessoas interessadas nessa obra de altruísmo e começou a praticar e a ensinar o Braille. Em fevereiro de 1939, atendendo ao apelo espiritual de sua tia, resolveu iniciar a transcrição do Pequeno Dicionário da Língua Portuguesa, primeira edição (1938), da Civilização Brasileira S/A Editora, de autoria de Hildebrando Lima e Gustavo Barroso, cuja transcrição levou quatro anos de intermitentes trabalhos, dando, ao todo, 64 volumes. Em setembro de 1943, Chico Xavier recebe a quinta mensagem do Espírito de Engrácia Ferreira, agradecendo à sobrinha o atendimento de seu apelo e o valioso trabalho em prol dos cegos. D. Júlia Pêgo de Amorim iniciou um curso gratuito de Braille, no centro da cidade, visando, com esse curso, maior número de colaboradores para a grande tarefa. Fez um apelo através do rádio e foi procurada pelo confrade Manoel Jorge Gaio, fundador da Instituição Marieta Gaio, que se ofereceu para auxiliar financeiramente a obra. Com esse incentivo, pôde dar início à transcrição do aludido dicionário, recebendo, algum tempo depois, a colaboração das senhoras Maria Pêgo Santos, Maria Amorim Joviano e Zulmira Feital Cavalcante de Freitas. Graças à inestimável colaboração dessas valorosas senhoras, concluiu a obra em menor tempo. Em 14 de julho de 1943, ofertou o dicionário, pronto e encadernado, ao Instituto Benjamin Constant. Entre a grande bibliografia transcrita estão: O Evangelho segundo o Espiritismo, de Allan Kardec (3 volumes), doados à Federação Espírita Brasileira, Pequenas mensagens, de Emmanuel (3 volumes), Voltei, de Irmão Jacob (3 volumes), Catecismo espírita (1 volume), Agenda cristã, de André Luiz (1 volume), todos doados à Sociedade Pró-Livro Espírita em Braille (Spleb). Além de livros importantes como A moreninha, A vida de Helen Keller, A ilha de John Bull, Música ao longe, Contos policiais, Jornal e pensamentos de cada dia (de Elisabeth Leseur), Manual de análise léxica e sintática, Estatutos da Associação dos Servidores Públicos e muitos outros, todos doados às grandes instituições de cegos do Brasil. Sua obra em Braille sobe a mais de 90 volumes.
D. Júlia Pêgo de Amorim, inteiramente integrada na campanha do bem-estar dos cegos, tomou parte ativa na fundação de várias instituições especializadas nesse sentido, como a Sociedade dos Amigos Cegos, Instituição das Cegas Helen Keller e outras, inclusive fazendo parte de várias diretorias, patrocinando inúmeras campanhas pró-sedes próprias, promovidas por damas da melhor sociedade do Rio de Janeiro, que ela arregimentava. Recebeu inúmeras condecorações pelos serviços prestados aos cegos.
No dia 11 de novembro de 1952, perdeu o seu idolatrado esposo, amigo incondicional de todas as horas, Dr. Aurélio de Amorim, então reformado no posto de general do Exército. Foi convidada pelo Marechal Mário Travassos para a Sociedade Pró-Livro Espírita em Braille, da qual se fez verdadeiro baluarte, sendo eleita para o seu conselho deliberativo, exercendo vários cargos. Pronunciou inúmeras conferências públicas, tanto na parte espírita quanto na profana, inclusive na Associação Brasileira do Instituto Benjamin Constant. No dia 18 de fevereiro de 1965, foi agraciada com o diploma de Honra ao Mérito por proposta do Conselho Nacional para o Bem-estar dos Cegos.
D. Júlia Pêgo de Amorim, mulher extraordinária, exemplo de esposa, de mãe de família, de mestre e de espírita jamais esmoreceu em sua caminhada luminosa, criando um conceito novo na sociedade de que o cego não precisa de esmola, necessita de educação e preparação para que possa viver uma vida digna e feliz como todos os seus irmãos em humanidade. A sua desencarnação ocorreu no Rio de Janeiro, aos 29 de novembro de 1974, aos 95 anos de idade, dos quais 37 anos dedicados à Doutrina Espírita e ao Braille. Deixou exemplos dignificantes do quanto vale estender o Evangelho de Jesus, separando a letra que mata do espírito que vivifica, ficando a fé raciocinada que só a Doutrina Espírita nos faz compreender.
Antônio de Souza, Lucena
Nota da editora: Original sem dados tipográficos.