1. Após adaptar-me mais ou menos a essa nova vida, ocorreu-me como vos poderia rever e solicitei de um instrutor informação a respeito.
— “Sabes em que direção está a Terra?” — Perguntou ele com bondade.
2 Diante da minha natural ignorância, apontou-me com a destra um ponto obscuro que se perdia na imensidade, recomendando fitá-lo atentamente. 3 Afigurou-se-me vê-lo crescer dentro de um turbilhão de sirocos indescritíveis. Parecia-me contemplar a impetuosidade de um furacão a envolver grande massa compacta de cinzas enegrecidas.
4 Tomada de inusitado receio, desviei o olhar; porém, o meu solícito guia, exclamou com brandura:
— “Lá está a Terra com os seus contrastes destruidores; os ventos da iniquidade varrem-na de pólo a pólo, entre os brados angustiosos dos seres que se debatem na aflição e no morticínio. 5 O que viste é o efeito das vibrações antagônicas, emitidas pela humanidade atormentada nas calamidades da guerra. Lá alimentam-se as almas com a substância amargosa das dores e sobre a sua superfície a vida é o direito do mais forte. Triste existência a dessas criaturas que se trucidam mutuamente para viver.
6 “São comuns, ali, as chacinas, a fome, as epidemias, a viuvez, a orfandade que aqui não conhecemos… Obscuro planeta de exílio e de sombra! Entretanto, no universo, poucos lugares abrigarão tanto orgulho e tanto egoísmo! Por tal motivo é que esse mundo necessita de golpes violentos e rudes.
7 “Busca ver naquelas regiões ensanguentadas o local em que estiveste. Pensa nos que lá deixaste, cheios de amargurosa saudade! Deus permite e eu te auxilio.”
2. Delineei, então, na mente, tudo quanto se relacionava com a minha derradeira existência. Primeiramente, vi-me à margem de uma encantadora paisagem marítima avistando um caminho longo, através do qual fui impelida a seguir.
2 Sentia-me na posse das faculdades volitivas, que obtivera com o meu desprendimento da vida carnal, e numa fração infinitésima de tempo estava ao vosso lado.
3 Ah! Como vos abracei a todos, emocionada e recolhida! Como achei pequenino o nosso antigo lar e como me penalizou o quadro das vossas dores e dificuldades!
4 Chorei amargamente vendo a miséria do mundo que vos compele ao sofrimento e a uma batalha sem tréguas!…
5 Então misturei, com a prece dos encarnados, sofredores e aflitos, a oração de minha alma amedrontada, rogando ao Pai Celestial que vos fortificasse na luta redentora, onde, ao lado dos inúmeros prantos e das alegrias mascaradas, esvoaça o bando das mil tentações que assediam os Espíritos no ambiente obscuro da vida carnal, obrigando-os ao esquecimento de seus deveres e de suas austeras obrigações morais.
3. A grande dificuldade dos desencarnados, para se fazerem compreendidos no tocante às modalidades da nova existência com todos os seus pormenores, reside justamente na ausência de termos comparativos: falta-lhes, em se manifestando nesse sentido, a lei analógica a fim de que se possa assimilar devidamente o que digam.
2 Para darmos a ideia do que seja a nossa vida e os detalhes da nossa habitação, muitas vezes é preciso que recorramos às imagens que a Terra nos oferece, a tudo quanto o homem, em sua situação temporária, tem guardado na retina.
4. Nos Planos adjacentes ao mundo, contudo, a vida espiritual transcorre em ambiente semelhante ao da vida terrena.
2 Suas construções, à base de uma substância para nós desconhecida, têm, mais ou menos, as disposições que aí se observam; todavia, nas menores coisas, há um caráter de transição, obrigando o Espírito a elevar suas aspirações e seus interesses para o Alto.
3 Nos locais em que me encontrava temporariamente, muitos departamentos haviam que se preparavam às pressas. Decorações, ornamentos, objetos, tudo ali se achava e se confundia, dando perfeita ideia de grandes estabelecimentos hospitalares cuidadosamente organizados.
5. Surpreendida, vim a saber que os preparativos se destinavam aos recém-desencarnados da última grande guerra; n e não foi ainda sem surpresa que vi chegarem os primeiros ocupantes daqueles alvos leitos, que se perdiam nas vastas enfermarias, graciosas e confortáveis, não sabendo explicar por que razão havia necessidade daquele cenário, mundano em demasia, onde nada faltava, nem mesmo os instrumentos de técnica operatória.
2 De instante a instante eis que chegava uma leva de macas, conduzidas por almas solícitas e devotadas.
3 Se muitos hospitais de sangue são preparados na Terra, nos infaustos dias de lutas fratricidas, mais ainda são as organizações congêneres nos Planos da erraticidade. Nem todos, porém, que desencarnam, abrigam-se em semelhantes lugares, havendo situações especiais, privativas àqueles que a elas fizeram jus.
6. Admirei a delicadeza com que os seres espiritualizados recebiam os seus irmãos egressos dos combates, onde centenas de vidas jovens foram ceifadas impiedosamente. Eram, assim recolhidos com a maior bondade, como se fossem feridos penetrando nos hospitais comuns da Terra.
7. Muitos dos que ali ingressavam, manifestavam o seu pavor à morte, rogando em altos brados que os livrassem de perecer. Solicitavam aos que os assistiam socorro e auxílio, suplicando que lhes prolongassem a vida em favor da noiva idolatrada, dos pais carinhosos e queridos, dos seres inesquecíveis que haviam ficado à mercê do abandono e do infortúnio.
2 Era para mim, singularmente interessante, ouvir-lhes essas rogativas, porquanto desconhecia ainda todo o poder somático sobre a inteligência recém-desencarnada.
8. Eram todos tratados com inexcedível carinho e as suas amargas queixas obtinham réplicas afetuosas e animadoras promessas.
2 Alimentação e tratamento tudo se assemelhava estritamente ao que se pode verificar na face do orbe, até mesmo certas bagatelas que constituíam motivos de prazer para alguns, como o uso do tabaco ou de beberagens preferidas.
3 Tudo ali era confeccionado por entidades zelosas a fim de que se preparassem convenientemente para o conhecimento do que ocorria. 4 Paulatinamente recuperavam suas forças perdidas; e os que se mantinham num estado, que podemos classificar como o de convalescença, eram separados dos demais companheiros.
9. Recebiam, então, vaga noção da verdade, observando fenômenos interessantes, operados por sua vontade sobre as matérias circunstantes, cuja maleabilidade os assombrava.
2 Esclarecidos mestres, frequentemente, lhes dirigiam a palavra como apóstolos da paz, em excursão nos departamentos militares.
10. Lembro-me de que, certa vez, quando elevado mentor espiritual exaltava os benefícios da fraternidade, um dos ouvintes interpelou-o:
— “Não se pode pregar a paz em tempo de guerra!”
2 — “Que é a vida, meu filho, senão amor? E poderá haver amor sem paz?” — Replicou-lhe docemente o apóstolo.
3 “Foi a maldade dos homens que engendrou a guerra, dizimadora dos ideais e das existências. As fúrias da impiedade varrem quase todas as extensões da Terra e os corações se dilaceram ao sopro frio da adversidade!… 4 Poderia Deus, em sua misericórdia, sancionar esses crimes nefandos? Para sua infinita bondade não existem franceses ou alemães: há filhos bem amados da sua sabedoria e do seu amor.”
11. Houve, porém, na grande assembleia, que ouvia aquela voz estranha, um surdo clamor de protesto.
— “Serenai o vosso ânimo!”— Objetou-lhes calmamente.
2 “Em vão levantais o vosso clamor de protesto… Ouvi-me. Tende-vos preparado convenientemente para saber a verdade. Já não podeis integrar as fileiras de combatentes que fornecem mão forte à nefasta política da incompreensão das leis divinas. 3 Para a Terra, em cuja face presumis continuar, sois mortos anônimos, sois o soldado desconhecido. 4 Aprouve à magnanimidade da Providência que aqui fôsseis acolhidos suavemente, sem abalos prejudiciais. Vossos corpos estão muito distantes, no regaço da Terra benfazeja, estraçalhados por forças cegas e assassinas!
5 “Ingressastes em outra vida. Compete-vos, portanto, esquecer os vossos dias, aniquilados pelo ódio execrando!
6 “Considerai a lei de amor que deve unir todas as almas como laço eterno e sacrossanto!”
12. Então, como se estivesse em ação um misterioso poder, a atmosfera transmutou-se, afigurando-se-me haver se rasgado grande nuvem.
2 Uma paisagem maravilhosa desenhou-se na imensidade: muitas mães estendiam seus braços amorosos aos filhos sempre lembrados; muitos seres caros, chorando de emoção e alegria, vinham ao encontro daqueles corações tomados de espanto e de receio.
3 Uma estrada florida desdobrou-se sobre as nossas cabeças e um hino vibrante se ouviu nas vibrações do éter. Era a glorificação de ventura do Espírito imortal, onde haviam sonoridades indescritíveis.
4 “Oh, Senhor do Universo, vós, que criaste todas as coisas, concedeste-lhes a beleza da imortalidade.
5 “Sede bendito por todos os séculos dos séculos, pela dor que nos redimiu e nos lavou todas as culpas, pelas lutas onde adquirimos experiência e denodo moral, pelo vosso amor intraduzível que nos legou todas as felicidades imorredouras!
6 “Como é grande, Senhor, o júbilo do nosso último dia na Terra, se só em vós buscávamos amparo e consolação, repouso e fortaleza, carinho e proteção!”
13. Todas as vozes então se reuniram num coro inigualável e, naquele dia, presenciando o esclarecimento de algumas almas que daquela hora em diante, se tornaram em ativas colaboradoras da beneficência sideral, assisti uma das mais comovedoras homenagens prestadas à bondade do Criador.
Maria João de Deus
Nota — Referências sobre a guerra de 1914.