1 Depois de zero hora. E a dama recordava
O filho de quem fora venturosa escrava.
2 No bairro, era o silêncio a dominar nas ruas…
Quantas horas da noite? Um tanto, além das duas…
3 E a senhora viúva, acostada no leito
Lembrava o filho amado, o jovem belo e forte,
Que o coração de mãe supusera perfeito,
Cuja fuga de casa,
Fora no pai amigo o motivo da morte.
4 Vinte anos de ausência!… — e ela refletia
Em todo aquele tempo de agonia.
O filho que criara, a beijos de ternura,
De quem não descansava na procura,
A quem nunca levara o mínimo desgosto,
E a quem ela e o marido haviam dado tudo,
Dinheiro, ostentação, brilho e facilidades,
Buscando adivinhar-lhe todas as vontades,
Recusara o trabalho e renegara o estudo…
Por fim, todo inclinado à cocaína,
Desertou porque o pai tão somente o internasse
Num colégio distinto em que se lhe evitasse
A droga deprimente…
5 Insone, calma e ativa,
A memória se lhe aviva
E inacessível a calmantes,
Rememora a tragédia de anos antes.
O moço nunca mais voltara ao lar.
Ralada por extremo desconforto,
Logo após, ela vira o companheiro morto
De saudade e pesar.
Mudara-se de bairro e residência,
Mas nada lhe alterara as lutas da existência.
Vinte anos de pranto e de aflição
Haviam feito dela
Pobre mãe transformada em sentinela
Da casa nobre e farta, à espera do rapaz,
Que lhe arrasara a vida, a segurança e a paz,
E que ela amava ainda…
6 Mas enquanto pensava, ouve um ruído leve.
Escutou, escutou… Alguém de passo curto
Estava em quarto próximo,
Certamente na prática do furto.
Ao choque, ela chamou, em altos brados,
A colaboração dos empregados,
Mas o assaltante se aproxima,
A valer-se da sombra em todo o espaço estreito;
Era um homem robusto a lhe cair por cima,
Cravando-lhe um punhal no velho peito.
7 Ergue-se um dos vigias,
Vem às pressas,
De longe, liga a luz…
Eis que o quarto se fez de todo iluminado
E o salteador não foge,
Sente-se preso à mão que se lhe estende,
Contempla a vítima que o fita,
Num transporte de amor com ternura infinita…
Reconhece o semblante maternal
E a desfazer-se em pranto,
Ajoelha-se e grita:
— “Mãe querida,
Por que cheguei a tanto,
A tanto crime e a tanto mal,
A ponto de acabar com a sua própria vida?…”
8 A dama retirou a lâmina cravada
— Doloroso empecilho —
O sangue gotejou da ferida formada,
E, em seguida, exclamou: — “Ah! meu filho, meu filho!…
Que saudades de ti, quanta saudade,
O tempo parecia a eternidade!…”
9 Entretanto, o vigia invadiu o aposento,
Vendo um homem chorando e a dama em sofrimento,
Quis gritar e reagir, austero e humano,
Mas a senhora diz: — “Ouça, Germano,
Meu filho regressou, venha reconhecê-lo…
Na precipitação de meu antigo zelo,
Feri-me por engano…
Caí sobre o punhal que eu trazia no seio,
No entanto, estou feliz… Olhe!…Meu filho veio…
Dê-lhe as chaves da casa,
Tudo o que tenho é dele, a minha própria vida…”
E conservando a mão sobre a parte ferida,
Rogou ao servidor:
— “Chame o médico amigo,
Transmita a ele tudo o que lhe digo
E explique este acidente…
Meu filhinho chegou tão de repente
Para fazer-me esta surpresa,
Que caí no punhal em que eu mantinha
Ou supunha manter minha própria defesa…
Estou feliz, Germano, mas agora…”
O servidor gritou: — “Ah! não morra, senhora!…”
Entretanto, mais fraca e mais cansada,
A dama ainda falou, muito pálida e triste:
— “Germano, ajude agora ao meu rapaz
Compreendo que estou chegando ao fim,
Sê a ele fiel,
Dê a ele o respeito, a estima e a bondade
Que você sempre deu a mim…”
10 O filho ajoelhou-se, em pranto comovente,
E clamava, ao beijá-la, ansiosamente,
— “Mãe, perdoa-me e vive, mãe querida!…
Entremostrando o anseio de falar,
Ela, porém, lhe deu o último olhar,
Deu-se, de todo, a isso, fez-se forte
E descansou, por fim, dizendo, ao entregar-se à morte:
— “Louvado seja Deus!… Deus te abençoe, meu filho!…”
Maria Dolores
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