1 De portas abertas ao serviço da caridade, a casa dos Apóstolos em Jerusalém vivia repleta, em rumoroso tumulto.
2 Eram doentes desiludidos que vinham rogar esperança, velhinhos sem consolo que suplicavam abrigo. Mulheres de lívido semblante traziam nos braços crianças aleijadas, que o duro guante do sofrimento mutilara ao nascer, e, de quando em quando, grupos de irmãos generosos chegavam da via pública, acompanhando alienados mentais para que ali recolhessem o benefício da prece.
Numa sala pequena, Simão Pedro atendia, prestimoso.
3 Fosse, porém, pelo cansaço físico ou pelas desilusões hauridas ao contato com as hipocrisias do mundo, o antigo pescador acusava irritação e fadiga, a se expressarem nas exclamações de amargura que não mais podia conter.
— Observa aquele homem que vem lá, de braços secos e distendidos? — Gritava para Zenon, o companheiro humilde que lhe prestava concurso, — aquele é Roboão, o miserável que espancou a própria mãe, numa noite de embriaguez… Não é justo sofra, agora, as consequências?
E pedia para que o enfermo não lhe ocupasse a atenção.
4 Logo após, indicando feridenta mulher que se arrastava, buscando-o, exclamou, encolerizado:
— Que procuras, infeliz? Gozaste no orgulho e na crueldade, durante longos anos… Muitas vezes, ouvi-te o riso imundo à frente dos escravos agonizantes que espancavas até à morte… Fora daqui! Fora daqui!…
5 E a desmandar-se nas indisposições de que se via tocado, em seguida bradou para um velho paralítico que lhe implorava socorro:
— Como não te envergonhas de comparecer no pouso do Senhor, quando sempre devoraste o ceitil das viúvas e dos órfãos? Tuas arcas transbordam de maldições e de lágrimas… O pranto das vítimas é grilhão nos teus pés…
6 E, por muitas horas, fustigou as desventuras alheias, colocando à mostra, com palavras candentes e incisivas, as deficiências e os erros de quantos lhe vinham suplicar reconforto.
7 Todavia, quando o Sol desaparecera distante e a névoa crepuscular invadira o suave refúgio, modesto viajante penetrou o estreito cenáculo, exibindo nas mãos largas nódoas sanguinolentas.
No compartimento, agora vazio, apenas o velho pescador se dispunha à retirada, suarento e abatido.
8 O recém-vindo, silencioso, aproximou-se, sutil, e tocou-o docemente.
O conturbado discípulo do Evangelho só assim lhe deu atenção, clamando, porém, impulsivo:
— Quem és tu, que chegas a estas horas, quando o dia de trabalho já terminou?
9 E porque o desconhecido não respondesse, insistiu com inflexão de censura:
— Avia-te sem demora! Dize depressa a que vens…
10 Nesse instante, porém, deteve-se a contemplar as rosas de sangue que desabotoavam naquelas mãos belas e finas. Fitou os pés descalços, dos quais transpareciam, ainda vivos, os rubros sinais dos cravos da cruz e, ansioso, encontrou no estranho peregrino o olhar que refletia o fulgor das estrelas…
11 Perplexo e desfalecente, compreendeu que se achava diante do Mestre, e, ajoelhando-se, em lágrimas, gemeu, aflito:
— Senhor! Senhor! Que pretendes de teu servo?
12 Foi então que Jesus redivivo afagou-lhe a atormentada cabeça e falou em voz triste:
— Pedro, lembra-te de que não fomos chamados para socorrer as almas puras… Venho rogar-te a caridade do silêncio quando não possas auxiliar! Suplico-te para os filhos de minha esperança a esmola da compaixão…
13 O rude, mas amoroso pescador de Cafarnaum, mergulhou a face nas mãos calosas para enxugar o pranto copioso e sincero, e quando ergueu, de novo, os olhos para abraçar o visitante querido, no aposento isolado somente havia a sombra da noite que avançava de leve.
Irmão X
(Humberto de Campos)