1 Naquela manhã ensolarada de domingo, Gustavo Torres, em seu gabinete de estudo, alinhava preciosos conceitos sobre a arte de ajudar.
2 Espiritualista consciencioso, acreditava que a luta na Terra era abençoada escola de formação do caráter e, por isso, atendendo às exigências do próprio ideal, enfileirava, tranquilo, frases primorosas para o comentário evangélico que pretendia movimentar na noite seguinte.
3 Depois de renovadora prece, começou a escrever, sentidamente:
— O próximo, de qualquer procedência, é nosso irmão, credor de nosso melhor carinho.
4 — O caluniador é um teste de paciência.
5 — Quando somos vitimados pela ofensa, estamos recebendo de Jesus o bendito ensejo de auxiliar.
6 — Desesperação é chuva de veneno invisível.
7 — A desculpa constante é garantia de paz.
8 — Não olvides que a irritação, em qualquer parte, é fermento da discórdia.
9 — Suporta a dificuldade com valor, porque a provação é recurso demonstrativo de nossa fé.
10 — Se um irmão transviado te prejudica o interesse, recebe nele a tua valiosa oportunidade de perdoar.
11 — Se alguém aparece, como instrumento de aflição em tua casa, não fujas ao exercício da tolerância.
12 — A calma tonifica o espírito…
13 Nesse momento, a velha criada veio trazer o chocolate, sobre o qual, sem que ela percebesse, pousara pequena mosca, encontrando a morte.
14 Torres anotou o corpo estranho e, repentinamente indignado, bradou para a servidora:
— Como se atreve a semelhante desconsideração? Acredita que eu deva engolir um mosquito deste tamanho?
15 Impressionada com o golpe que o patrão vibrara na bandeja, a pobre mulher implorou:
— Desculpe-me, senhor! A enfermidade ensombra-me os olhos…
— Se é assim, — falou áspero, — fique sabendo que não preciso de empregados inúteis…
16 O conferencista da arte de ajudar ainda não dera o incidente por terminado, quando o recinto foi invadido pelo estrondo de um desmoronamento.
O condutor de um caminhão, num lance infeliz, arrojara a máquina sobre um dos muros da sua residência.
17 O dono da casa desceu para a via pública, como se fora atingido por um raio.
Abeirou-se do motorista mal trajado e gritou, colérico:
— Criminoso! Que fizeste?
— Senhor, — rogou o mísero, — perdoe-me o desastre. Pagarei as despesas da reconstrução. Tenho a cabeça tonta com a moléstia de meu filhinho, que agoniza, há muitos dias…
— Desgraçado! O problema é seu, mas o meu caso será entregue à polícia.
18 E quando Torres, possesso, usa o telefone, discando para o delegado de plantão, meninos curiosos invadiam-lhe o jardim bem tratado, esmagando a plantação de cravos que lhe exigira imenso trabalho na véspera.
Exasperado, avançou para as crianças, ameaçando:
— Vagabundos! Larápios! Rua, rua!… Fora daqui!… Fora daqui!…
19 Daí a instantes, policiais atenciosos cercavam-lhe o domicílio e Torres regressou ao gabinete, qual se estivesse acordando de um pesadelo…
Da mesa, destacava-se minúsculo cartaz, em que releu o formoso dístico aí grafado por ele mesmo: — “Quando Jesus domina o coração, a vida está em paz.”
20 Atribulado, sentou-se.
Deteve-se novamente, na frase preciosa que escrevera, reconheceu quão fácil é ensinar com as palavras e quão difícil é instruir com os exemplos e, envergonhado, passou a refletir…
Irmão X
(Humberto de Campos)