1 Narra-nos um episódio autêntico que certo orientador do mundo israelita enviou um discípulo, que se notabilizara na interpretação dos Profetas, para determinada cidade, cujos habitantes se chafurdavam em vícios e enfermidades de toda espécie, com a recomendação de prestar-lhes concurso ativo.
2 Dois lustros correram, e porque as notícias do burgo fossem cada vez mais inquietantes, o guia do povo chamou o enviado, que compareceu, em atitude hierática, mostrando, na túnica lirial e no semblante mortificado de jejuns, a rigorosa observância da Lei.
3 Às primeiras interpelações ouvidas, respondeu, em tom grave:
— Mestre, para dar exemplo de virtude, retirei-me para o campo, onde todos sabem que existo.
— Compreendo, — disse o mentor, — a solidão é necessária para que o pensamento se refaça com a inspiração divina; contudo, sem ligação com as criaturas humanas, é impraticável qualquer obra de auxílio.
4 E o entendimento continuou:
— Para não errar, vivo em completo mutismo, no fervor da oração.
— Medida essencialmente importante, mas, ainda que tenhamos de aprender em duras experiências, é preciso falar para que o bem seja feito.
5 — Expondo a pureza dos meus sentimentos, visto-me exclusivamente de branco…
— Costume honroso; no entanto, isso não deve impedir que nossa roupa se enodoe no trabalho de ajuda aos outros, para ser novamente lavada em momento oportuno.
6 — Minhas refeições são apenas de ervas.
— Hábito excelente; contudo, para trazer o corpo em condições de servir, é importante não desertar dos sistemas da alimentação comum, embora seja nossa obrigação garantir a simplicidade e fugir aos desregramentos, n usando a carne dos animais, o leite, os ovos; e as folhas, os frutos e as raízes das plantas, tão somente na quota indispensável à manutenção da existência.
7 — Durmo sem qualquer agasalho, fustigando as tendências inferiores…
— Louvável propósito, mas, na preservação da saúde orgânica, é justo repousar, nos moldes em que os outros descansam, a fim de que a vida no corpo nos ofereça maior rendimento para o melhor.
8 — Faço, porém, muito mais… Tenho o leito eriçado de pregos, castigando a volúpia da carne…
— Nobre intento, sem dúvida… Entretanto, vale mais combater a nós mesmos, na prestação de serviço ao próximo, para que a nossa luta não seja vã…
9 Silenciando o pupilo, indagou o chefe:
— E a tarefa de que te incumbiste?
— Mestre, — replicou o mensageiro, desapontado, — sinceramente devo dizer que os cuidados na apresentação da virtude me tomam o tempo todo…
10 Nisso, belo cavalo de alvo pelo entrou no átrio da casa, conduzindo pobre ferido, cujas últimas energias o deserto esgotara…
O velho orientador comandou as providências iniciais de socorro e, trazendo o discípulo à frente do soberbo animal que escarvava o solo, falou com bondade:
11 — Pois olha, meu filho, este cavalo igualmente mora no retiro da Natureza, não se expressa em linguagem humana, veste-se todo em cabelos cor de neve, come apenas a erva que brota do chão, dorme ao relento, é calçado de cravos perfurantes e não passa de um cavalo… Mesmo assim, é o companheiro dos viajantes fatigados e, ainda agora, acaba de arrebatar um mercador prestimoso à sepultura de areia…
12 Em seguida, demandou o interior para confortar o recém-chegado, deixando o aprendiz a meditar quanto à vacuidade da virtude vazia.
Irmão X
(Humberto de Campos)
[1] No original: “usando a carne, o leite, os ovos, as folhas, os frutos e as raízes dos animais e das plantas,”.