1 Quando ainda no mundo, não me era dado avaliar o “tête-à-tête” amigável dos Espíritos, à maneira dos homens, apenas com a diferença de que as suas palestras não se desdobram à porta dos cafés ou das livrarias.
E é com surpresa que me reúno àqueles que estimo, quando se me apresentam oportunidades para uns dedos de prosa.
2 Estávamos nós, quatro almas desencarnadas, como se fôssemos no mundo quatro figuras apocalípticas, discutindo ainda as coisas mesquinhas da Terra, e a palestra versava justamente sobre a evolução das ideias espíritas no Brasil.
3 — “Infelizmente — exclama um do grupo, provecta figura dessas doutrinas, desencarnado há bons anos no Rio de Janeiro — o que infesta o Espiritismo em nossa terra é o mau gosto pelas discussões estéreis. O nosso trabalho é contínuo para que muitos confrades não se engalfinhem pela imprensa, demonstrando-lhes, com lições indiretas, a inutilidade das suas polêmicas. Mesmo assim, a Doutrina tem realizado muito. Suas obras de caridade cristã estão multiplicadas por toda parte, atestando o labor do Evangelho.”
4 Foi lembrada, então, a figura respeitável de Bittencourt Sampaio, no princípio da organização espírita no país, recordando-se igualmente a covardia de alguns companheiros que, guindados a prestigiosas posições na sociedade e na política, depressa esqueceram o seu entusiasmo de crentes, bandeando-se para o oportunismo das ideologias novas.
5 Ia a conversação nessa altura, quando o Dr. C., um dos mais caridosos facultativos do Rio, recentemente desencarnado e cujo nome não devo mencionar, respeitando os preconceitos que se estendem às vezes até aqui, explicou:
— “É pena que venhamos a compreender tão tarde o Espiritismo, reconhecendo a sua lógica e grandeza moral só depois do nosso regresso do mundo.
6 “Nós, os médicos, temos sempre o cérebro trabalhado de canseiras, na impossibilidade de resolver o problema da sobrevivência. É certo que nunca se encontrará o ser na autópsia de um cadáver, mas, tudo na vida é uma vibração profunda de espiritualidade. Como, porém, a Ciência vigia as suas conquistas do passado, ciosa dos seus domínios, ainda que sejamos inclinados às verdades novas, somos obrigados, muitas vezes, a nos retrair, temendo os Zaratustras da sua infalibilidade.
“Eu mesmo, nos meus tempos de clínica no Rio de Janeiro, fui testemunha de casos extraordinários, desenrolados sob as minhas vistas. Todavia, fui também presa do comodismo e do preconceito.”
7 E o Dr. C., como se mergulhasse os olhos no abismo das coisas que passaram, continuou pausadamente:
— “Eu já me encontrava com residência na praia de Botafogo, quando lavrou na cidade um surto epidêmico de gripe, aliás com mínima repercussão, comparado à epidemia de após a guerra. E como sempre contava, entre aqueles que recorriam à minha atividade profissional, diversos amigos pobres dos Morros e particularmente da Prainha, foi sem surpresa que, numa noite fria e nevoenta, abri a porta para receber a visita de uma garota de seus dez anos, humilde e descalça, que vinha, trêmula e acanhada, solicitar os meus serviços.
8 — “Doutor, dizia ela, a mamãe está muito mal e só o senhor pode salvá-la… Quer fazer a caridade de vir comigo?”
“Impressionaram-me a sua graça infantil e o estranho fulgor dos olhos, bem como o sorriso melancólico que lhe brincava na boca miúda.
“Considerei tudo quanto esperava a minha atenção urgente e procurei convence-la da impossibilidade de a seguir, prometendo atende-la no dia imediato. Todavia, a minha pequena interlocutora exclamou com os olhos rasos d’água:
9 — “Oh! doutor, não nos abandone. Ninguém, a não ser a proteção de Deus, vela por nós neste mundo. Se o senhor não nos quiser auxiliar, a mamãe estará perdida e ela não pode morrer agora. Venha!… o senhor não teve também uma mãe que foi o anjo de sua vida?”
“A última frase dessa menina tocou fundo o meu coração e lembrei-me dos tempos longínquos, em que minha mãe embalava os sonhos da minha existência, comprando-me com o suor da sua pobreza honesta os alfarrábios e o pão.
10 “Eu devia auxiliar aquela pequena, fosse onde fosse. A Medicina era o meu sacerdócio e dentro da noite chuvosa que amortalhava todas as coisas, como se o Céu invisível chorasse sobre as trevas do mundo, o táxi rolava conosco, como fantasma barulhento, atravessando as ruas alagadas e desertas. Aquela menina, triste e silenciosa, tinha os olhos brilhantes, perdidos no vácuo. Seu corpo magrinho recostava-se inteiramente nas almofadas, enquanto os pés minúsculos se escondiam nas franjas do tapete. Lembrando as suas frases significativas, quis reatar o fio do nosso diálogo: “Há muito tempo que sua mãe se acha doente?”
11 — “Não, senhor. Primeiro, fui eu; enquanto estive mal, tanto a mamãe cuidou de mim que até caiu cansada e enferma, também.”
— “Que sente a sua mãe?”
— “Muita febre. As noites são passadas sem dormir. Às vezes, grito para os vizinhos, mas parece que não me ouvem, pois estamos sempre as duas isoladas… Costumamos chorar muito com esse abandono; mas, diz a mamãe que a gente precisa sofrer, entregando a Deus o coração.”
12 — “E como soube você onde moro?”
— “Foi a visita de um homem que eu não conhecia. Chegou devagarinho à nossa porta, chamando-me à rua, dizendo-se amigo que o senhor muito estima; e, ensinando-me a sua casa, prometeu que o senhor me atenderia, porque também havia tido uma mãe boa e carinhosa.”
13 “Nosso diálogo foi interrompido. A pequena enigmática mandou parar o carro. Apontou o local de sua residência, estendendo a mão descarnada e miúda e, com poucos passos, batíamos à porta modesta de uma choupana miserável.
— “Espere, doutor, disse ela, eu lhe abrirei a porta passando pelos fundos.”
14 “E, já inquieta, desembaraçada, desapareceu das minhas vistas. Uma taramela deslizou com cuidado, no meio da noite, e entrei no casebre. Uma lamparina bruxuleante e humilde, que iluminava a saleta com o seu clarão pálido, deixava ver, no catre limpo, um corpo de mulher, desfigurado e disforme. Seu rosto, sulcado de lágrimas, era o atestado vivo das mais cruéis privações e dificuldades. Níobe † estava ali petrificada na sua dor. Todos os martírios se concentravam naquele pardieiro abandonado. Às minhas primeiras perguntas, respondeu numa voz suave e débil:
15 — “Não, doutor, não tente arrancar minha alma desesperada das garras da Morte! Nunca precisei tanto, como agora, deixar para sempre o calabouço da Vida.”
“E prosseguia, delirando: — “Nada me resta… Deixem-me morrer!…”
16 “Sobrepus, porém, minha voz às suas lamentações e exclamei com energia:
— “Minha senhora, vou tomar todas as providências que o seu caso está exigindo. Hoje mesmo cessará esse desamparo. Urge reanimar-se! Resta-lhe muita coisa no mundo, resta-lhe essa filha afetuosa, que espera o seu carinho de mãe extremosa!…”
17 — “Minha filha? — retrucou aquela criatura, meio-mulher e meio-cadáver — enquanto duas grossas lágrimas feriram fundo as suas faces empalidecidas — minha filha está morta desde anteontem. Olhe, doutor, aí no quarto e não procure devolver a saúde a quem tanto necessita morrer!…”
18 “Então, espantado, passei ao apartamento contíguo. O corpo de cera daquela criança misteriosa, que me chamara nas sombras da noite, ali estava envolvido em panos pobres e claros. Seu rosto imóvel, de boneca magrinha, era um retrato da privação e da fome. Os grandes olhos fulgurantes estavam agora fechados, e na boca miúda pairava o mesmo sorriso suave das almas resignadas e tristes.
“Eu deslizara nas avenidas com uma sombra dos mortos.”
19 E, cobrindo melancolicamente o painel das suas lembranças, o nosso amigo terminou:
— “Decorridos tantos anos, ainda ouço a voz do fantasma pequenino e gracioso; e, na luta da vida, muita vez me ocorreu o seu conselho suave, que me ensinou a sofrer, entregando a Deus o coração.”
Humberto de Campos
(Irmão X)
28 de agosto de 1935.