O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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A Vida Escreve — Hilário Silva — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 2ª Parte


16

Calvário maternal

I


1 Quando Maria Quitéria, viúva e doente, chegou à casa do Dr. Lauro de Melo, tinha o corpo mais morto que vivo.

O médico e a senhora, amigos de longo tempo, receberam-na entediados.

2 Trazia Quitéria o semblante deformado.

Perdera um dos olhos e o outro se mostrava esbugalhado, a verter uma lágrima que não chegava a cair.

3 O rosto, queimado meses antes por grande porção de vitríolo, impunha-lhe dolorosa feição. Parecia muito mais um monstro em corpo de mulher.

— Estou quase cega, — dizia, humilhada, — e, além disso, com o acidente sou hoje inútil. Espantam-se todos. Leio anúncios, pedindo serviçais. Compareço. Entretanto, quando me veem, desanimam… Tento a lavanderia; contudo, dizem que trago moléstia contagiosa.

4 E apresentando Licurgo, o filhinho de cinco anos, falou súplice:

— Ofereço-lhes o menino. É meu único filho, mas vivemos os dois em fome e penúria.

5 D. Ninita, a dona da casa, olhou o pequeno com simpatia. Não tinha filhos e dispunha-se a tutelá-lo. O petiz, mal vestido, correspondia-lhe a atenção, com agudeza e inteligência.

— O garoto será nosso, — disse. — Mas se vier com papel passado. Sem que você faça renúncia completa, desisto…

6 A lágrima parada no olho doente fez-se mais grossa e o pranto jorrou. Pranto resignado, silencioso.

Ainda assim, Maria Quitéria teve forças para acariciar o menino e entregá-lo, assumindo o compromisso de assinar o sacrifício em cartório.


II


1 O menino Licurgo, agora o moço Licurgo de Melo, pela generosidade do casal que o perfilhara, sempre que vinha de férias encontrava no lar a pobre lavadeira cercando-o de atenções.

2 Não compreendia por que os pais adotivos facultavam a Maria Quitéria liberalidades tão grandes. E somente à força dos bons conselhos em casa lhe suportava os carinhos.

3 Às vezes, noite alta, ao chegar da rua, ouvia passos de leve. Podia esperar. Num minuto, a prestimosa lavadeira vinha trazer-lhe o chocolate que não pedira. E, sorrindo, zombava de suas poucas letras, exclamando:

— Você é uma excelente megera.

4 Acostumada a vocabulário restrito, a pobre criatura tartamudeava palavras de reconhecimento e alegria, como se ele houvera dito: — “Você é uma excelente mamãe.”

5 À mesa, servia-lhe quitutes raros em regime de exceção. Ele, porém, não perdia oportunidade para magoá-la. Se lhe dirigisse qualquer olhar de enternecimento, ao passar distraído, nas proximidades do tanque de lavar, avançava de pronto, à feição de um gato ferido, mergulhando-lhe a cabeça disforme na tina d’água.

6 Quando a via rondando o quarto, batia a porta, colérico.

E, quanto podia, buscava os pejorativos mais duros para lançar-lhos em rosto, com sorridente expressão, como se fossem elogios adocicados.


III


1 Jovem médico e recém-casado, o Dr. Licurgo de Melo, de parceria com o pai pelo coração, consagrava-se, agora, à arruinada saúde de D. Ninita, a caminho da morte. E, junto deles, Maria Quitéria, mais cansada, era sombra a mover-se, ajudando calada.

2 Vigílias. Dificuldades.

Rosana, a esposa jovem, mantinha-se a distância, no governo doméstico.

3 Depois de muitos dias e noites esfalfantes, a doente cerrou os olhos do corpo para não mais abri-los. Inconsolável, o viúvo aceitou o alvitre de parentes bondosos, decidindo-se por alguns meses no campo.

4 Maria Quitéria, abandonada agora aos caprichos dos donos mais moços da casa, passou a sofrer rude trato.

Nem mesmo a memória de D. Ninita, por ela invocada nos momentos difíceis, foi sequer respeitada.

5 Dr. Licurgo e Rosana, partilhando por ela a mesma antipatia gratuita, submeteram-na a insuportáveis humilhações. Velhos sapatos no fogo. Roupa humilde subtraída à velha canastra para servir como esfregão na limpeza dos pisos. Comida escassa.

6 E, por fim, a expulsão.

Entretanto, nunca se encorajava a sair, ainda mesmo sob ameaças.

7 Tantas lhe foram, porém, as dores e as privações, que um dia não mais se ergueu.

— Agora é levá-la à força para o hospital, — dissera Rosana, dominadora; e Licurgo, com toda a facilidade, desterrou-a para uma seção de indigentes, descartando-se, enfim…


IV


1 Atendendo à oração de dois estudantes de Medicina, dedicados à assistência cristã, conhecemos Maria Quitéria, em seu leito de angústia.

A cirrose do fígado agravava-se pouco a pouco. Nada conseguia deter a esclerose retrátil, agora irreversível.

2 Visitamos, assim, a casa principesca do filho que a conhecia, desconhecendo-a. E vimos a volta do Dr. Lauro de Melo ao antigo solar em que fora feliz.

3 Era noite. Depois do chá, com saborosos confeitos, perguntou pela serviçal, ao que Rosana informou, displicente:

— Afinal de contas, Dr. Lauro, Maria Quitéria era um trambolho difícil de conservar.

4 O velho médico ouviu todo o relatório, carregando o cenho, e, depois, tomando corajosamente a palavra, explicou-lhes a verdade total. A pedido da própria Maria Quitéria, a esposa desencarnada e ele se abstiveram de dar-lhes a conhecer a realidade. Ela temia fazer o filho infeliz, diante da aversão que sua presença sempre lhe causava.

5 E, por fim, ele, que conhecia agora os segredos do sofrimento moral, ante a saudade constante da companheira, chorou intensivamente, ao contar que fora o próprio Licurgo, quando menino de quatro anos, quem lhe despejara no rosto um vidro de ácido sulfúrico.

6 O pai, operário simples de uma grande oficina, possuía o corrosivo em casa, como material de serviço. Na noite seguinte ao dia dos funerais dele, enquanto a infortunada viúva dormia, Licurgo, na inconsciência infantil, entornara-lhe o ácido na face.

7 Maria Quitéria sofrera terrivelmente, mas escapara, embora conservando monstruoso semblante. Licurgo chorava, abraçado à esposa, igualmente banhada em pranto.

8 Na mesma noite, demandaram a enfermaria, que se abriu facilmente, extra-ordens, ante as duas patentes médicas. Entre leitos anônimos, Maria Quitéria agonizava…

Dr. Lauro tomou-lhe o pulso e abanou a cabeça. Era tarde.

9 Licurgo e Rosana ajoelharam ao pé da cama:

— Mamãe! Mamãe! — Gritou ele, chorando, — por que não me disse tudo?

10 A enferma, nas raias da morte, identificando as visitas, cobrou ânimo e contemplou-o, enternecida. Daria tudo para erguer a mão quase fria e afagar-lhe a cabeça, mas não pôde.

11 Licurgo, porém, viu que aquele inesquecível olhar o reconhecera, e pediu:

— Mamãe, minha mãe, perdoe-me, perdoe-me!

12 Ela, reunindo todas as forças e como se nunca tivesse razões para perdoar, simplesmente falou:

— Deus te abençoe, meu filho!

13 E, passeando a triste expressão do olho semimorto pelo aposento, disse ainda:

— Meu filho, meu filho, leve-me para casa…

14 Entretanto, não mais voltou.

Ao calor do abraço filial, encharcado de lágrimas, dormiu, e veio ter conosco.

15 A Morte, qual humanitária cirurgiã, refizera-lhe o rosto.

E dormindo em nossos braços, na viagem para a vida melhor, guardava a expressão serena de um anjo.


Hilário Silva


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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