I
Amadeu Barbosa, recentemente desencarnado, era motivo de nossa grande preocupação.
Fora soldado, a serviço da ordem. Corretíssimo. Substituindo o companheiro Abílio Marques, em determinada diligência, tombara em lamentável desastre e perdera o corpo físico.
Acabrunhado, queria voltar à esfera dos homens, precisava voltar…
E tanto rogou socorro, que me recordo perfeitamente do dia em que o instrutor Camerino, recebendo-nos as consultas particulares, lhe falou, firme:
— Amadeu, se você deseja a ajuda de alguém, comece por ajudar alguém.
Desde essa hora, vimo-lo ativo, modificado…
II
Achávamo-nos ao pé de Abílio Marques, quando a enfermeira se abeirou dele e falou calma:
— Não se impaciente, Sr. Abílio. Deus nos ajudará.
Logo após, a senhora simpática buscou o interior da maternidade e Marques permaneceu cismarento na sala de espera.
Qual caracol refugiado na concha, ensimesmara-se, esquecendo o mundo em torno.
Pensava… pensava…
Lembrava-se de todas as ocorrências, como se fossem acontecimentos daquele mesmo dia, embora guardassem o curso de três anos.
Tudo começara naquela tarde…
III
Ele, Abílio, sentia-se sonolento.
Chegara fatigado da corporação.
O dia fora cheio.
Tomou lanche reforçado e tentou repousar…
Mal começou a dormir, escutou a voz materna a chamá-lo: — Abílio! Abílio!
Encontrava-se de pé ao telefone…
D. Amélia, a genitora, ouvira-o dizer, de olhos cerrados, dando a impressão de diálogo pelo fio:
— Alô! Que alegria!
— … n
— Como, vai? Disponha, disponha…
— … n
— Ah! sei. Perfeitamente.
— … n
— Hoje? Farei o possível. Conte comigo, conte comigo…
Impressionada, D. Amélia despertou-o às sacudidelas.
O filho passava, às vezes, por semelhantes fenômenos. Era sonâmbulo. Costumava levantar-se à noite e andar automaticamente dentro de casa.
A mãezinha passou a relatar-lhe o que ouvira. Palavra por palavra.
Ele, porém, estava radiante e contou que conservava a lembrança nítida.
Seria simples sonho? Não ocultava, contudo, a alegria a lhe brilhar no espírito.
— Mas… que foi, meu filho?
E ele explicara à mãezinha espantada:
— Mamãe, foi o Amadeu! O Amadeu Barbosa, meu colega de serviço que morreu há tempos. Telefonou-me, precisamente na hora em que se habituara a fazê-lo…
— Meu filho, que é isso? Onde tem a cabeça? Tudo não passa de sonho, pesadelo como os outros…
— Mamãe, mamãe, esperemos! Ele disse algo…
— Que disse?
— Pediu-me ajudar a uma jovem necessitada que enviará até nós ainda hoje.
D. Amélia sorriu, bondosa, mas irônica, e afastou-se.
Contente, pusera-se ele a ler os vespertinos, em plena expectação.
IV
Onze da noite.
A história do sonho estava esquecida, quando alguém bate à porta.
Levantara-se mecanicamente para atender.
Era pobre moça mal vestida e despenteada.
Buscou a mãezinha e ambos a ouviram, interessados.
Chamava-se Irene. Estava órfã, sem destino. O pai, único apoio de que dispunha, falecera, havia dias, vítima de grande explosão. Tinham chegado, há tempos, do interior e o desastre surpreendera-os em quarto humilde de aluguel, exatamente quando o genitor desaparecido procurava trabalho. Expulsa dos escombros a que se acolhera, andava sem rumo. Tinha fome. Ouvira palavras desrespeitosas na rua e resolvera pedir socorro. Por isso, estava ali, sozinha e necessitada.
Chorava.
D. Amélia consolou-a e consultou o marido.
Custódio Marques, o dono da casa, dera o contra.
Mas, Abílio, filho único, implorava ao pai auxiliasse a menina, como se fora a irmã que lhe faltava. E Custódio, vencido pelo carinho, enternecera-se.
Irene fora recolhida em casa, como em seu novo lar.
Trabalhava, ajudava, compreendia…
Fizera-se necessária.
Restaurara-se.
Era a filha que D. Amélia esperava sempre.
Quando Custódio caíra febril, com tremenda infecção, fora ela a enfermeira dedicada e hábil…
Depois de dois anos, com a alegria de todos, Abílio desposara-a.
A pupila de ontem era-lhe agora a companheira querida.
V
Como se lembrava, agora, de todos os sucessos e de todas as minudências!
Procurávamos asserenar-lhe a mente inquieta, quando ouvimos o choro forte de uma criança.
Sorriu, aflito, enquanto a enfermeira reapareceu com ar triunfante a chamá-lo:
— Sr. Abílio! Sr. Abílio! É um lindo menino! O parto, graças a Deus, foi normalíssimo…
Acompanhamo-lo ao quarto…
Abílio, emocionado, inclinou-se para a esposa e beijou-a, ternamente, na face.
Em seguida, tomou o recém-nato, em pranto de alegria.
— Então, meu filho, — perguntou D. Amélia, que se achava ao pé da nora, — como se chamará meu netinho?
— Ah! O nome? — Respondeu Abílio, tonto de júbilo. — Ele se chamará Amadeu… Amadeu Barbosa Marques, não é, Irene?
E a esposa fez um gesto de aprovação, transbordando felicidade.
VI
Sim, Barbosa renascera.
Recomeçava a existência para lutar e triunfar.
E, diante dos fatos, recordamos a lição do instrutor:
— Amadeu, se você deseja a ajuda de alguém, comece por ajudar alguém.
Hilário Silva
[1] [No original dois sinais de reticência.]