1 O distinto causídico não ocultava a ojeriza que experimentava pela Doutrina Espírita. Fosse onde fosse, se a conversa versasse sobre algum tema de Espiritismo, escorregava deliberadamente para o sarcasmo. “Essa história de Espiritismo só num tratado psiquiátrico” — dizia, irônico, — e destilava pequenas difamações como quem debulhava espigas de brasas. 2 Tão azedo adversário se fizera, que aproveitou largo período de férias, em fazenda silenciosa, para escrever um livro contra os postulados espíritas. Livro-acusação. Livro de ódio. Nos serões caseiros, costumava ler para os amigos esse ou aquele trecho, em que médiuns eram denunciados e apupados de maneira cruel. E riam-se, ele e os companheiros, entre um e outro gole de uísque, salpicando a lama esfogueante em forma de letras.
3 O distinto advogado assumia as primeiras responsabilidades para enviar o volume à editora, quando sobreveio o inesperado.
Dirigia carro elegante, nas proximidades de um grupo escolar, quando atarantado pequeno, a correr desorientado, lhe cai sob as rodas.
Um passarinho sob um trator não morreria mais depressa.
Tumulto. Autoridades em cena.
4 Ele mesmo, suportando os impropérios do povo, apanha o cadáver minúsculo e, de coração agoniado, busca a residência da vítima.
Em sã consciência não é culpado, mas tem o coração alanceado de intensa dor.
5 Chorando copiosamente, entrega o menino morto aos pais em pranto, que o recebem sem a mínima queixa.
O pai acaricia os cabelos da criança, em silêncio, e a mãezinha ora em lágrimas.
6 Deseja ser humilhado, acusado, ferido. Isso, decerto, lhe diminuiria a tensão. Encontra ali, porém, apenas a resignação e a serenidade.
7 O advogado consulta então a família sobre a instauração do processo de indenização, mas o chefe da família responde, firme:
— Nada disso. O doutor não teve culpa alguma. Ninguém faria isso por querer… Os desígnios de Deus foram cumpridos…
8 E a mãe do menino, enxugando o rosto, acrescenta:
— Choramos, como é natural, mas não desejamos indenização alguma. Deus sabe o que faz.
9 O causídico, de olhos vermelhos, considerou:
— Então…
10 Mas o dono da casa cortou-lhe a palavra, acentuando:
— Doutor, não se preocupe… Compreendemos perfeitamente que o senhor não tem culpa… O senhor está sofrendo tanto quanto nós… Ore conosco, a fim de acalmar-se…
11 Admirando-lhes a paciência cristã, o causídico indagou, vacilante:
— Que religião professam?
— Nós somos espíritas, — informou o pai da pequena vítima.
12 O advogado baixou a cabeça e ali permaneceu, sensibilizado e prestimoso, até à realização dos funerais.
E à noite, em casa, de coração opresso e transformado, fechou-se no quarto e rasgou o livro-libelo que havia escrito.
Hilário Silva