1 Enoque era um ancião que se abeirava dos cem janeiros.
2 Residindo numa choça que se encostava a uma peroba, cuja idade renteava com a dele, alimentava-se de frutas e chá que improvisava com folhas aromáticas e água quente.
3 Entre aqueles viajantes e amigos que atravessavam a estrada, a poucos metros de sua moradia, a fim de revê-lo, o agricultor José Prado, procurou-lhe a amenidade da companhia e indagou, com respeito:
— Enoque, você acredita na lei de causa e efeito?
4 Como não? — Respondeu o interpelado com voz trêmula. A idade me pesa nas costas, há vários decênios, e nunca vi um só caso em que essa lei da vida viesse a falhar.
E, virando para o interlocutor os velhos braços, acentuou: — a propósito de que o senhor me faz esta pergunta?
5 O amigo não se melindrou e narrou pensativo:
— Há cinco anos, entrei em luta corporal com o Joaquim Mota, que é seu conhecido, e, na briga, cortei-lhe dois dedos da mão esquerda, que sangrou abundantemente… 6 Depois de algum tempo pedi-lhe perdão do gesto impensado e ele não só me perdoou, como também me convidou para um café em sua própria casa. Senti grande alívio, porque me achava arrependido da violência que praticara e voltei ao trabalho em meus canaviais. 7 Ontem, porém, coloquei meu facão num galho de árvores, para limpar a plantação nova e distraí-me sem notar que o dia de calor nos mergulhara a todos, os meus auxiliares e eu, numa ventania brava. Aproximava-se o aguaceiro e corremos, em busca dos restos da casa velha do Antônio e quando passei, a passo rápido, sob o galho da Aroeira que me guardava o facão, ei-lo que se despenca sobre mim, sem motivo aparente me cortando dois dedos da mão esquerda, como sucedera no dia em que mutilei a mão do Joaquim Mota.
8 O narrador fez uma pausa e finalizou:
— O senhor acredita que eu tenha sido executado segundo a lei de causa e efeito?
9 Enoque tossiu e falou em voz cansada:
— Acredito, sim…
— Entretanto — observou o visitante, não posso esquecer que o Mota já me perdoara.
10 Enoque fez um gesto expressivo de afirmação e explicou:
— Mota lhe perdoara a ofensa, mas a lei lhe havia registrado o gesto impulsivo e terá considerado que o perdão do amigo lhe oferecia a oportunidade, a fim de que a dor de seus dois dedos lhe advertisse para não repetir o ato que lhe impunha dor e arrependimento ao coração.
11 Enoque — solicitou o amigo, — fale-nos então dessa lei que não podemos burlar!…
12 O velhinho levantou-se com muita dificuldade e, ali mesmo, retirou da mesa tosca um ensebado exemplar do Novo Testamento e esclareceu:
— Meu amigo, estou no fim de minha longa existência e já não disponho de tempo para longas conversações. 13 Quando preciso de alguma explicação, recorro aos ensinamentos de Jesus e sempre tenho a resposta. Abra este livro e veja o que o Mestre nos diz.
14 Intranquilo, o consulente abriu o rolo e achou as palavras do Apóstolo Mateus lendo o Versículo nº 52 do Capítulo 26, ( † ) em que Jesus adverte a nós todos: “quem com ferro fere com ferro será ferido…” n
Emmanuel
[1] A frase: “quem com ferro fere com ferro será ferido” não está registrada na Bíblia que conhecemos; portanto, podemos considerá-la uma paráfrase das palavras de Jesus ditas a Pedro, em Mateus 26.52. Vide: Pena de Talião.