1 Eu só e o surdo mundo… 23 n
O leito me veste em branco.
As cadeiras repousam em branco.
As paredes estão levantadas em branco,
sustentando o teto parado, em branco.
As janelas talhadas em branco
deixam passar o vento gárrulo e brincalhão,
que desliza sem cor.
As cortinas, parecendo longas mãos brancas,
engastadas nos braços rijos da porta,
acenam adeus, em branco.
2 Eu só e o surdo mundo… 34
Quero fitar os rostos que me cercam,
mas vejo apenas semblantes graves,
semelhantes a camafeus de cobre em placas de alumínio.
Quero gritar o terror do desconhecido,
mas a boca foi trancada pelas chaves da névoa muito branca
que me envolve de todo…
Falam somente em mim as grossas gotas brancas
que me rolam da face.
3 Eu mudo e o surdo mundo…
Depois de muitas horas da expectativa em branco,
na vazante branca em que ainda respiro, n
surge a enchente das sombras.
Tudo crepeia em torno…
Céus! Não sou Deus
que traduz a noite em poema de estrelas,
nem pirilampo humilde que acende a lanterninha lucilante…
4 Eu cego e o surdo mundo…
Levanto-me, tateio, choro, clamo, esmagado pelas mós invisíveis da escuridão, n
por muito tempo…
5 De improviso, porém, nova luz rasga as trevas, e os fotônios,
que me atingem as pupilas cansadas, dizem-me sem palavras
para que me aquiete,
anunciando, por fim,
que Deus é meu pai
e que a Vida é minha mãe,
guardando-me nos braços,
para sempre, para sempre!
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Caetano PERO NETO — Contista, romancista, e poeta do grupo dos “novíssimos”, cursava o 5.º ano da Faculdade de Direito de S. Paulo, quando desencarnou. Nos últimos tempos de ginásio, colaborava nos jornais de Itápolis. Depois encetou a publicação de poesias e contos nos periódicos Álvares de Azevedo, Tribuna Liberal, XI de Agosto, etc. Orador oficial da Associação Acadêmica “Álvares de Azevedo”, aos 19 anos já “era o representante intelectual do corpo discente da Faculdade” (apud Xangô e…, pág. 12). Em 1936, foi eleito presidente da referida Associação Acadêmica. Redigiu, com Osmar Pimentel e Mário da Silva Brito, a folha universitária Anhanguera. Participou do movimento intelectual da “Bandeira”, chefiado por Cassiano Ricardo e Menotti del Picchia. Membro da Academia de Letras da Faculdade. Ulisses Guimarães (apud Dic. Aut. Paul., página 469) disse que ele “foi um lírico, como tal eminentemente subjetivo”. “Seus poemas,” — escreveu Dulce Salles Cunha (Aut. Contemp. Brasileiros, pág. 229) — “em geral muito pessoais, são quase todos isentos de senões.” (Itajobi, Est. de S. Paulo, 21 de Agosto de 1916 — S. Paulo, Est. de S. Paulo, 23 de Dezembro de 1937.)
BIBLIOGRAFIA: Xangô e Outros Poemas, obra póstuma.
[1] 2-5. Observe-se o ricochete nos dois versos: “Pássaro livre, plana, plana…” e “A fonte corre, corre…”
[2] Epanástrofe: “…encarcerando a ideia. /Mas a ideia…” Cf. Dic. Gramatical — Português, Prof. Francisco Fernandes.
[3] Enumeração: “Recurso estilístico, denominado enumeração caótica por Leo Spitzer, e consistente em uma apresentação, quase catalogal, de ideias ou elementos que se sucedem com um máximo de rapidez e fluência, sem prejuízo da qualidade do texto, …” (Geir Campos, Op. cit.)
[4] Dentro dos moldes modernistas, “O Espírito” guarda aquela beleza das coisas transcendentais. “Pólen do Universo — o Espírito” — imagem das mais admiráveis; “soltar a melodia das masmorras de sombra para a festa dos sóis”; “esgarçar as brumas de todas as prisões” — são versos que pelo seu poder imagístico e dinamismo expressivo por si sós revelam a perícia do poeta para contagiar o espírito do leitor com o belo que dimana de seus versos livres. Aliás, Pero Neto preenche a finalidade do poeta: “fixar a beleza que passa”, com a diferença de que ele fixa, agora, a beleza que nunca passará — o Espírito.
[5] 23-34. Observem-se, versos mais abaixo, as variantes do antecanto “Eu só e o surdo mundo”.
[6] Digno de nota o gosto obsessivo do poeta pelo vocábulo “branco”, chegando a praticar, quase, a batologia.
[7] Atente-se na dinamização expressiva dada pelo assíndeto.