1 Aquele solo agreste era o lugar remoto
Onde vivia a sós o anônimo devoto.
2 Jovem ainda, ele presenciara
A cena que jamais olvidaria:
O pai apunhalado em agonia
Ante o vizinho que o aniquilara
Por mínima questão
De terra, muro, água e plantação…
3 Depois disso, afirmou no vilarejo
Que todo o seu desejo
Era buscar Jesus, sem sombras, sem perigos
E consagrar-se ao Mestre, inteiramente.
4 Não lhe valeram rogos de carinho
Da família que o viu mudado, de repente,
Declarava querer o seu próprio caminho
E partir com destino ignorado…
5 Avançou e avançou por regiões distantes,
Até que se instalou num bosque descampado
Que pagou a dinheiro de contado…
6 A não ser velho servo surdo e mudo
Que lhe servia a mesa
E lhe prestava auxílio em quase tudo,
Ninguém mais o avistara, ninguém mais.
7 Vivia em prece pelos matagais
E através do silêncio
Na paisagem formada em verdura e beleza,
8 Dava-se, vez em vez, à Natureza,
Plantando flores, quanto às quais dizia
Serem todas ofertadas ao Senhor,
A quem se devotara pleno de alegria
E profundo fervor.
9 Nas orações de cada dia, após entretecê-las,
Fitava o céu da noite, esmaltado de estrelas
E falava, em voz alta, implorando a Jesus:
10 — “Revela-me, Senhor,
Seja onde for e seja com quem for,
A tarefa que eu deva realizar!…
11 Tudo quanto desejo é te honorificar,
Em mim, tua vontade é um santo compromisso,
Dá-me teu plano, engaja-me em serviço!…”
12 O Tempo desfolhou vinte nove janeiros.
O devoto, porém, vivendo solitário,
Nunca mais consultou o calendário.
13 dia a dia, o silêncio, a quietude e a oração
Em que pedia aos Céus qualquer indicação
Do trabalho a fazer;
Que aceitaria, enfim, por sagrado dever…
14 Certa noite, no entanto, ele se viu em sonho
Encantado e risonho,
Numa ilha de paz, no mar do firmamento;
15 Espantado, ele viu, piedoso e atento,
Que Jesus vinha vê-lo…
Ergue-se para ouvi-lo em recatado zelo
16 E eis que o Mestre lhe diz confiante e amigo:
— “Filho, regressa ao lar, terás hoje contigo
O encargo que pediste em oração…
17 Um companheiro, em vasta provação,
Virá pedir-te amparo e socorro em meu nome;
18 É um pobre delinquente
Que tem pago no mundo, asperamente,
Os erros dos momentos de loucura.
19 Já sofreu menosprezo, abandono, assalto, desventura…
Hoje, é mendigo, um réprobo que erra
Nas veredas de lágrimas da Terra,
Sem meios de vencer a luta que o consome;
20 Dá-lhe de teu amor, na bênção de teu pão,
Ele te rogará consolo ao coração;
21 Mesmo em havendo empeço, ajuda-o mesmo assim,
Faze isso, meu filho, em memória de mim…”
22 Reconhecendo em Cristo a presença da Lei,
O devoto, extasiado e reverente,
Respondeu, claramente:
— “Obrigado, Senhor!… Assim farei…”
23 Nisso, ele volta ao corpo…
Enlevado, desperta.
Manhã clara. Ouve alguém, batendo à porta,
Num choro que o agita e desconforta
Na morada deserta…
24 Recordando a visão do sonho iluminado,
Ergue-se, estremunhado,
Lembra Jesus com desvelado amor
E pergunta a si mesmo
Quem o procuraria
No amanhecer daquele dia,
Com tanta gritaria e tanta dor…
25 Atônito, ele sai
E encontra no infeliz, sem rumo e sem caminho,
O antigo desafeto, o impiedoso vizinho
Que lhe amargara a vida e lhe arrasara o pai.
Maria Dolores
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