1.
— Sim, — afirmava-nos o Instrutor Druso, sabiamente, — o estudo da situação
espiritual da criatura humana, após a morte do corpo, não pode ser relegado
a plano secundário. Todas as civilizações que antecederam a glória ocidental
nos tempos modernos consagraram especial atenção aos problemas de além-túmulo.
2 O Egito mantinha
incessante intercâmbio com os trespassados e ensinava que os mortos
sofriam rigoroso julgamento entre Anúbis,
o gênio com cabeça de chacal, e Horus,
o gênio com cabeça de gavião, diante de Maât,
a deusa da justiça, decidindo se as almas deveriam ascender ao esplendor
solar ou se deveriam voltar aos labirintos da provação, na própria Terra,
em corpos deformados e vis; 3
os hindus admitiam que os desencarnados, conforme as resoluções do Juiz
dos Mortos, subiriam ao Paraíso ou desceriam aos precipícios do reino
de Varuna, o gênio das águas, para serem insulados em câmaras de tortura,
amarrados uns aos outros por serpentes infernais; 4
hebreus, gregos, gauleses e romanos sustentavam crenças mais ou menos
semelhantes, convictos de que a elevação celeste se reservava aos Espíritos
retos e bons, puros e nobres, guardando-se os tormentos do inferno para
quantos se rebaixavam na perversidade e no crime, nas regiões de suplício,
fora do mundo ou no próprio mundo, através da reencarnação em formas
envilecidas pela expiação e pelo sofrimento.
5 A conversação fascinava-nos.
Hilário e eu visitávamos a “Mansão Paz”, notável escola de reajuste de que Druso era o diretor abnegado e amigo.
O estabelecimento, situado nas regiões inferiores, era bem uma espécie de “mosteiro São Bernardo”, em zona castigada por natureza hostil, com a diferença de que a neve, quase constante em torno do célebre convento encravado nos desfiladeiros entre a Suíça e a Itália, era ali substituída pela sombra espessa, que, naquela hora, se adensava, movimentada e terrível, ao redor da instituição, como se tocada por ventania incessante.
6 O pouso acolhedor, que permanece
sob a jurisdição de “Nosso Lar”, n
está fundado há mais de três séculos, dedicando-se a receber Espíritos
infelizes ou enfermos, decididos a trabalhar pela própria regeneração,
criaturas essas que se elevam a colônias de aprimoramento na Vida Superior
ou que retornam à Esfera dos homens para a reencarnação retificadora.
7 Em razão disso, o casario
enorme, semelhante a vasta cidadela instalada com todos os recursos
de segurança e defesa, mantém setores de assistência e cursos de instrução,
nos quais médicos e sacerdotes, enfermeiros e professores encontram,
depois da morte terrestre, aprendizados e quefazeres da mais elevada,
importância.
8 Pretendíamos efetuar algumas
observações, com referência às leis de causa e efeito, — o carma dos
hindus, — e, convenientemente recomendados pelo Ministério do Auxílio,
achávamo-nos ali, encantados com a palavra do orientador, que prosseguia,
atencioso, após longa pausa:
9 — Acresce notar que a Terra
é vista sob os mais variados ângulos. Para o astrônomo, é um planeta
a gravitar em torno do sol; para o guerreiro é um campo de luta em que
a geografia se modifica a ponta de baionetas; para o sociólogo é amplo
reduto em que se acomodam raças diversas; mas, para nós, é valiosa arena
de serviço espiritual, assim como um filtro em que a alma se purifica,
pouco a pouco, no curso dos milênios, acendrando qualidades divinas
para a ascensão à glória celeste. Por isso, há que sustentar a luz do
amor e do conhecimento, no seio das trevas, como é necessário manter
o remédio no foco da enfermidade.
10 Enquanto nos entendíamos,
reparávamos lá fora, através do material transparente de larga janela,
a convulsão da Natureza.
Ventania ululante, carreando consigo uma substância escura, semelhante à lama aeriforme, remoinhava com violência, em torvelinho estranho, à maneira de treva encachoeirada…
11 E do corpo monstruoso do
turbilhão terrível rostos humanos surdiam em esgares de horror, vociferando
maldições e gemidos.
Apareciam de relance, jungidos uns aos outros como vastas correntes de criaturas agarradas entre si, em hora de perigo, na ânsia instintiva de dominar e sobreviver.
12 Druso, tanto quanto nós,
contemplou o triste quadro com visível piedade a marcar-lhe o semblante.
Fixou-nos em silêncio como a chamar-nos para a reflexão. Parecia dizer-nos
quanto lhe doía o trabalho naquela paragem de sofrimento, quando Hilário
interrogou:
13 — Por que não descerrar
as portas aos que gritam lá fora? Não é este um posto de salvação?
— Sim, — respondeu o Instrutor, sensibilizado, — mas a salvação só é realmente
importante para aqueles que desejam salvar-se.
14 E, depois de pequeno intervalo,
continuou:
— Para cá do túmulo, a surpresa para mim mais dolorosa foi essa, o encontro com feras humanas, que habitavam o templo da carne, à feição de pessoas comuns. Se acolhidas aqui, sem a necessária preparação, atacar-nos-iam de pronto, arrasando-nos o instituto de assistência pacífica. E não podemos esquecer que a ordem é a base da caridade.
15 Apesar da explicação firme
e serena, concentrava-se Druso no painel exterior, tal a compaixão a
desenhar-se-lhe na face.
Logo após, recompondo a expressão fisionômica, o Instrutor aduziu:
— Somos hoje defrontados por grande tempestade magnética, e muitos caminheiros das regiões inferiores são arrebatados pelo furacão como folhas secas no vendaval.
16 — E guardam consciência
disso? — Indagou Hilário, perplexo.
— Raros deles. As criaturas que se mantêm assim desabrigadas, depois do túmulo, são aquelas que não se acomodam com o refúgio moral de qualquer princípio nobre. Trazem o íntimo turbilhonado e tenebroso, qual a própria tormenta, em razão dos pensamentos desgovernados e cruéis de que se nutrem. Odeiam e aniquilam, mordem e ferem. Alojá-los, de imediato, nos santuários de socorro aqui estabelecidos, será o mesmo que asilar tigres desarvorados entre fiéis que oram num templo.
17 — Mas conservam-se,
interminavelmente, nesse terrível desajuste? — Insistiu meu companheiro
agoniado.
O orientador tentou sorrir e respondeu:
— Isso não. Semelhante fase de inconsciência e desvario passa também como a tempestade, embora a crise, por vezes, persevere por muitos anos. Batida pelo temporal das provações que lhe impõem a dor de fora para dentro, refunde-se a alma, pouco a pouco, tranquilizando-se para abraçar, por fim, as responsabilidades que criou para si mesma.
2.
— Quer dizer, então, — disse por minha vez, — que não basta a romagem
de purgação do Espírito depois da morte, nos lugares de treva e padecimento,
para que os débitos da consciência sejam ressarcidos…
2 — Perfeitamente,
— aclarou o amigo, atalhando-me a consideração reticenciosa, — o desespero
vale por demência a que as almas se atiram nas explosões de incontinência
e revolta. Não serve como pagamento nos tribunais divinos. 3
Não é razoável que o devedor solucione com gritos e impropérios os compromissos
que contraiu mobilizando a própria vontade. Aliás, dos desmandos de
ordem mental a que nos entregamos, desprevenidos, emergimos sempre mais
infelizes, por mais endividados. 4
Cessada a febre de loucura e rebelião, o Espírito culpado volve ao remorso
e à penitência. Acalma-se como a terra que torna à serenidade e à paciência,
depois de insultada pelo terremoto, não obstante amarfanhada e ferida.
Então, como o solo que regressa ao serviço da plantação proveitosa,
submete-se de novo à sementeira renovadora dos seus destinos.
3.
Atormentada expectação baixara sobre nós, quando Hilário considerou:
2 — Ah! Se as almas
encarnadas pudessem morrer no corpo, alguns dias por ano, não
à maneira do sono físico em que se refazem, mas com plena consciência
da vida que as espera!…
3 — Sim, — ajuntou
o orientador, — isso realmente modificaria a face moral do mundo; entretanto,
a existência humana, por mais longa, é simples aprendizado em que o
Espírito reclama benéficas restrições para restaurar o seu caminho.
Usando nova máquina fisiológica entre os semelhantes, deve atender à
renovação que lhe diz respeito e isso exige a centralização de suas
forças mentais na experiência terrena a que transitoriamente se afeiçoa.
4.
A palavra fluente e sábia do Instrutor era para nós motivo de singular
encantamento, e, porque me supunha no dever de aproveitar os minutos,
ponderava em silêncio, de mim para comigo, quanto à qualidade das almas
desencarnadas que sofriam a pressão da tormenta exterior.
2 Druso percebeu-me a indagação
mental e sorriu, como a esperar por minha pergunta clara e positiva.
Instado pela força de seu olhar, observei, respeitoso:
3 — Diante do espetáculo penoso
a que nos é dado assistir, somos naturalmente constrangidos a pensar
na procedência dos que experimentam o mergulho nesse torvelinho de horror…
São delinquentes comuns ou criminosos acusados de grandes faltas? Encontraríamos
por aí seres primitivos como os nossos indígenas por exemplo?
4 Os apontamentos do amigo não
se fizeram esperar.
— Tais inquirições, — disse ele, — quando de minha vinda para cá, me
assomaram igualmente à cabeça. 5
Há cinquenta anos sucessivos estou neste refúgio de socorro, oração
e esperança. Penetrei os umbrais desta casa como enfermo grave, após
o desligamento do corpo terrestre. Encontrei aqui um hospital e uma
escola. 6 Amparado,
passei a estudar minha nova situação, anelando servir. Fui padioleiro,
cooperador da limpeza, enfermeiro, professor, magnetizador, até que,
de alguns anos para cá, recebi jubilosamente o encargo de orientar a
instituição, sob o comando positivo dos instrutores que nos dirigem.
7 Obrigado a pacientes
e laboriosas investigações, por força de meus deveres, posso adiantar-lhes
que às densas trevas em torno somente aportam as consciências que se
entenebreceram nos crimes deliberados, apagando a luz do equilíbrio
em si mesmas. 8 Nestas
regiões inferiores não transitam as almas simples, em qualquer aflição
purgativa, situadas que se encontram nos erros naturais das experiências
primárias. 9 Cada ser
está jungido, por impositivos da atração magnética, ao círculo de evolução
que lhe é próprio. 10
Os selvagens, em grande maioria, até que se lhes desenvolva o mundo
mental, vivem quase sempre confinados a floresta que lhes resume os
interesses e os sonhos, retirando-se vagarosamente do seu campo tribal,
sob a direção dos Espíritos benevolentes e sábios que os assistem; 11
e as almas notoriamente primitivas, em grande parte, caminham ao influxo
dos gênios beneméritos que as sustentam e inspiram, laborando com sacrifício
nas bases da instituição social e aproveitando os erros, filhos das
boas intenções, à maneira de ensinamentos preciosos que garantem a educação
dessas almas. 12
Asseguro-lhes, assim, que, nas zonas infernais propriamente ditas, apenas
residem aquelas mentes que, conhecendo as responsabilidades morais que
lhes competiam, delas se ausentaram, deliberadamente, com o louco propósito
de ludibriarem o próprio Deus. 13
O inferno, a rigor, pode ser, desse modo, definido como vasto campo
de desequilíbrio, estabelecido pela maldade calculada, nascido da cegueira
voluntária e da perversidade completa. Aí vivem domiciliados, às vezes
por séculos, Espíritos que se bestializaram, fixos que se acham na crueldade
e no egocentrismo. 14
Constituindo, porém, larga província vibratória, em conexão com a Humanidade
terrestre, de vez que todos os padecimentos infernais são criações dela
mesma, estes lugares tristes funcionam como crivos necessários para
todos os Espíritos que escorregam nas deserções de ordem geral, menosprezando
as responsabilidades que o Senhor lhes outorga. 15
Dessa forma, todas as almas já investidas no conhecimento da verdade
e da justiça e por isso mesmo responsáveis pela edificação do bem, e
que, na Terra, resvalam nesse ou naquele delito, desatentas para com
o dever nobilitante que o mundo lhes assinala, depois da morte do corpo
estagiam nestes sítios por dias, meses ou anos, reconsiderando as suas
atitudes, antes da reencarnação que lhes compete abraçar, para o reajustamento
tão breve quanto possível.
— Desse modo…
16 Dispunha-se Hilário a ensaiar
conclusões, mas Druso, apreendendo-lhe a ideia, atalhou, sintetizando:
— Desse modo, os gênios infernais que supõem governar esta região,
com poder infalível, aqui vivem por tempo indeterminado. 17
As criaturas perversas que com eles se afinam, embora lhes padeçam a
dominação, aqui se deixam prender por largos anos. 18
E as almas transviadas na delinquência e no vício, com possibilidades
de próxima recuperação, aqui permanecem em estágios ligeiros ou regulares,
aprendendo que o preço das paixões é demasiado terrível. 19
Para as criaturas desencarnadas desse último tipo, que passam a sofrer
o arrependimento e o remorso, a dilaceração e a dor, apesar de não totalmente
livres das complexidades escuras com que se arrojaram às trevas, as
casas de fraternidade e assistência como esta funcionam, ativas e diligentes,
acolhendo-as quanto possível e habilitando-as para o retorno às experiências
de natureza expiatória na carne.
20 Lembrava-me do tempo em
que perlustrara, por minha vez, semiconsciente e conturbado, os trilhos
da sombra, quando de meu desligamento do veículo físico, confrontando
meus próprios estados mentais do passado e do presente, quando o orientador
prosseguiu:
21 — Segundo é fácil
reconhecer, se a treva é a moldura que imprime destaque à luz, o inferno,
como região de sofrimento e desarmonia, é perfeitamente cabível, representando
um estabelecimento justo de filtragem do Espírito, a caminho da Vida
Superior. 22 Todos
os lugares infernais surgem, vivem e desaparecem com a aprovação do
Senhor, que tolera semelhantes criações das almas humanas, como um pai
que suporta as chagas adquiridas pelos seus filhos e que se vale delas
para ajudá-los a valorizar a saúde. 23
As Inteligências consagradas à rebeldia e à criminalidade, em razão
disso, não obstante admitirem que trabalham para si, permanecem a serviço
do Senhor, que corrige o mal com o próprio mal. Por esse motivo, tudo
na vida é movimentação para a vitória do bem supremo.
24 Druso ia prosseguir, no entanto,
invisível campainha vibrou no ar e, mostrando-se alertado pela imposição
das horas, levantou-se e disse-nos simplesmente:
— Amigos, chegou o instante de nossa conversação com os internados que já se revelam pacificados e lúcidos. Dedicamos algumas horas, duas vezes por semana, a semelhante mister.
Erguemo-nos sem divergir e acompanhamo-lo, prestamente.
André Luiz
[1] Cidade espiritual na Esfera Superior. — (Nota do Autor espiritual.)