I
1 Grande confeitaria paulista, ao anoitecer. Clientela numerosa.
Quando Olavo Dias, denodado trabalhador da seara espírita, se aproxima da caixa para efetuar o pagamento de certa compra, surge a atoarda:
— Ladrão! Ladrão! Pega o ladrão! Pega! Pega!
2 Alia-se um guarda a robusto balconista e agarra pobre homem, extremamente mal vestido, que treme ao apresentar grande pacote nas mãos.
— Ele roubou de um freguês, — grita o caixeiro, como que triunfante ao guardar a presa.
3 Quase todos os rostos se voltam para o infeliz.
O policial apresta-se para as providências que o caso lhe sugere, mas Olavo Dias avança e toma a defesa.
— Não é um ladrão, — explica, — e não admito qualquer violência.
4 E no propósito de ajudá-lo, Olavo mente, afirmando:
— É meu empregado e, decerto, retirou o pacote julgando que me pertencesse.
5 Enérgico, toma o embrulho, devolve-o ao gerente, pede desculpas pelo engano e afasta-se com o desconhecido, dando-lhe o braço, como se o fizesse a um parente, diante dos circunstantes perplexos.
6 Dobrando, porém, a primeira esquina, dirige-lhe a palavra, admoestando:
— Ora essa, meu caro! Sou espírita e um espírita não deve mentir. Entretanto, fui obrigado a isso para defendê-lo.
7 O interpelado mergulha a fronte nas mãos ossudas e explica em lágrimas:
— Doutor, roubei porque tenho seis filhos com fome… Sou doente do peito… Não acho serviço…
— Bem, bem, — falou Olavo, comovido, — não estou aqui para fazê-lo chorar.
8 Condoído, abriu a bolsa, deu-lhe o concurso possível e perguntou-lhe pelo endereço.
O infeliz declarou chamar-se Noel de Souza, deu os nomes da esposa e dos filhos e informou residir nas proximidades da Vila Maria, em modesto barracão.
9 O benfeitor, realmente sensibilizado, prometeu visitá-lo na primeira oportunidade, e, finda uma semana, ei-lo de automóvel a procurar pela casinha distante.
Depois de algum esforço, localizou-a.
10 Encontrou a senhora Souza e os seis filhinhos esquálidos, mas o dono da casa não estava.
Saíra para angariar socorro médico.
11 Olavo, tocado de compaixão, fez quanto pôde pela família sofredora e, ao despedir-se, ouviu a dona da casa dizer-lhe sob forte emoção:
— Um dia, se Deus quiser, Noel há de retribuir o senhor por tudo o que está fazendo…
12 Precisando deixar S. Paulo, em função da vida comercial, Olavo recomendou os novos protegidos a diversos companheiros, e esqueceu a ocorrência.
II
1 Decorridos seis meses, Olavo, certo dia, chega apressado ao aeroporto de grande cidade brasileira.
Precisava viajar urgentemente, mas não tem passagem. Arriscar-se-á, no entanto, à aquisição de última hora.
2 Retendo pequena pasta, procura na multidão um amigo que o precedera, minutos antes, com o fim de ajudá-lo, até que o vê a pequena distância, acenando-lhe a que se apresse.
3 O problema está resolvido. Basta que apresente a documentação necessária.
Avança, presto, mas alguém cruza o caminho. Sente-se abraçado numa explosão de ternura.
4 Olavo tenta quebrar o impedimento afetivo, mas reconhece Noel de Souza e estaca, surpreendido.
— Você… aqui?
5 O amigo está humildemente trajado, mas limpo e alegre.
— Sim, doutor, preciso vê-lo, — confirma o interlocutor.
6 — Agora, não, — falou Olavo, contrafeito. Como se não lhe anotasse o azedume, o outro tomou-lhe o braço e arrasta-o docemente para fora do raio de visão do companheiro que o espera.
— Souza, não me detenha, não me detenha… — roga Olavo, inquieto.
7 — Escute, doutor, preciso agradecer-lhe… E como se não lhe pudesse escapar da mão, Olavo escuta-lhe a fala entediado e impaciente. Noel refere-se à esposa e aos filhos e repete frases de gratidão e carinho.
8 Depois de alguns instantes, Dias, revoltado, desvencilha-se e abandona-o sem dizer palavra. Alcança o amigo, mas é tarde.
O avião não pudera esperar.
Acabrunhado, vê, de longe, o aparelho de portas cerradas, na decolagem.
9 Bastante desapontado, busca Noel de Souza para ouvi-lo com mais atenção, já que perdera a viagem. Entretanto, por mais minuciosa a procura, não mais o encontra.
10 Daí a quatro horas, recebe trágica notícia.
O aparelho em que disputara lugar caíra de grande altura, sem deixar sobreviventes.
11 Intrigado, regressa a S. Paulo e corre a visitar a choupana de Noel. Quer vê-lo, abraçá-lo, comentar o acontecimento.
12 Mas, no lar modesto de Vila Maria, veio a saber que Souza desencarnara dois meses antes.
Hilário Silva