O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão
Doutrina espírita - 2ª parte.

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Almas em desfile — Hilário Silva — F. C. Xavier / Waldo Vieira — 1ª Parte


17

Clara

I


1 Zeferino olhava, olhava… Tudo em derredor fazia pensar. Pensar no passado, voltar aos anos esquecidos…

2 Quarto penumbrento. Piso de tijolos, manchado e sujo. Cheiro de perfume e mofo. Pia descascada a um canto. Roupas humildes dependuradas em mancebo de pés quebrados. Pequena mesa com gaveta entreaberta, mostrando grande cópia de objetos miúdos. 3 Em mesa próxima, sobre o forro pisado, podia ver no lusco-fusco várias caixinhas de cosméticos, vidros de água-de-colônia, pó-de-arroz, escovas…

4 Retratos pendendo de parede defronte.

5 E, sob a lâmpada de poucas velas, os olhos de Zeferino pervagavam no espaço estreito, recordando, recordando…


II


1 Como se lembrava!…

O convite partira do dono da casa, seu velho amigo Nicão: “Vamos! Você nunca observou um fenômeno mediúnico… Vamos!”

2 Tentara esquivar-se, mas a insistência afetuosa vencera: “Vamos, você fará uma ideia… Minha esposa é médium… Será interessante! “

3 E lá se fora pela primeira vez. E pela primeira vez ouviu a palavra de Felício, o amigo espiritual infatigável, através da jovem esposa de Nicão. 4 Dona Clara, a médium, em seus vinte anos incompletos, era moça inteligente e afável. Incorporando a personalidade de Felício, fornecera-lhe tamanhas demonstrações da sobrevivência, além da morte, que ele não pudera resistir à verdade. 5 E o grupo, mais unido, passou a reunir-se duas vezes por semana. União e alegria. Trabalho e fraternidade.

6 Fora, ali, na singela residência de Nicão, que nascera realmente o templo espírita em que ele viu a razão da própria existência.

7 Recordava a inauguração da sede.

A felicidade transbordava como sol.

8 D. Clara pedira a construção de dois aposentos anexos à parte dos fundos. “Seria a semente de um albergue maior”, — dissera, sorrindo.  9 E ali, a casa recebera os primeiros enfermos da rua. Dois quartos, em que ele e os companheiros exercitavam a caridade, ao pé dos sofredores anônimos, aplicando socorros magnéticos e lavando feridas.

10 Depois, quando o templo ainda não completava dois anos, Nicão desencarnou de repente.

11 A princípio, D. Clara sustentou-se, mas, após alguns meses de solidão, ela, que não tivera filhos, desertou da obra espiritual.

12 Se procuravam por ela para a reunião, estava esgotada, temia o mau tempo, ia receber um parente ou tinha dor de cabeça.

13 A moradia, dantes calma, dava festas inconvenientes, enchendo-se de rapazes e moças alegres. Ele, Zeferino, e os irmãos de ideal compreenderam tudo, por fim…


III


1 Há quanto tempo acontecera isso?…

Respondia-lhe a memória: “Vinte anos! Vinte anos!…”

Quantos acontecimentos, após a fundação!

2 Sentado no tamborete capenga, rememorava os seus vinte e tantos anos de conhecimento espírita!…

Primeiros livros. Primeiras responsabilidades. Primeiros contatos da própria família com a Doutrina Espírita. Primeiros sintomas da própria mediunidade… O primeiro passe que administrou, em prece e lágrimas… O templo progredindo… Novos cooperadores. Novas experiências. A compreensão melhor do povo, a família de Jesus. Lutas. Dificuldades. Amadurecimento da fé. Certeza no “Mundo de Lá”. Gratidão aos princípios renovadores…

3 Mergulhando em reflexão, notou que alguém chegava… Era uma senhora de olhar desconfiado e humilde, mostrando lábios e cabelos pintados, a esconder um cigarro na mão fincada às costas.

4 — O senhor acha que Clarita melhora? — Perguntou.

— Quem sabe? — Respondeu Zeferino, — confiemos em Deus.

Mas a conversa não prosseguiu porque alguns companheiros entraram carregando velha maca. Zeferino levantou-se.

5 Penetrou o quarto em que D. Clara agonizava… No corpo que a tuberculose aniquilara, só os olhos faziam lembrar a antiga Dona Clara…

Ossos pontudos punham o esqueleto à mostra.

A doente trazia a garganta sufocada pela dispneia, mas a imensa lucidez do olhar falava de seu profundo reconhecimento aos amigos.


IV


1 A maca, em que colocaram a enferma, atravessou várias ruas, sob a curiosidade popular.

Por fim, o cortejo parou no pátio interno do templo espírita, à porta do abrigo que Dona Clara mandara construir em outro tempo.

2 Senhoras acolheram-na com bondade. Vários irmãos surgiam, prestimosos.

Cícero Pontes, presidente do conselho da instituição, chamou Zeferino à parte e falou baixinho:

— Mas escute… Esta mulher aqui…

3 Zeferino, porém, respondeu decidido:

— Esta mulher tem que ficar aqui mesmo… Esta mulher foi a esposa de Nicão… Você ou eu podíamos estar no lugar dele e tanto minha esposa quanto a sua podiam estar no lugar dela… Vamos dar graças a Deus de poder ajudar. Ela veio para a casa que ela própria construiu. Está no que é dela.  4 E, quando assim não fosse, tem mais direito ao templo do que nós, por ser mais sofredora. Jesus não veio para curar os sãos…

— Mas, mesmo na Doutrina… — Tornou Pontes, reticencioso.

5 — Doutrina é luz de Deus, mediunidade é trabalho dos homens, — replicou Zeferino, sereno. — A cidade inteira sabe que Dona Clara errou, todos sabemos que ela abandonou os seus deveres, mas é nossa irmã e a nossa obrigação é estender-lhe os braços…


V


1 Alguém chegou, procurando por Zeferino e Pontes. O médico, que haviam chamado, queria conversar.

O facultativo anunciou que nada tinha a fazer.

A doente estava no fim…

2 A comunidade, expectante, cercava o leito.

Dona Clara, envolvida em lençóis muito brancos, denunciava extrema lucidez nos grandes olhos.

3 Sim, tudo em torno despertava saudade! O aposento guardava as mesmas disposições de sua escolha. As paredes cor-de-rosa. A janela ampla trazendo o ar perfumado das laranjeiras. Na mesa pequena, que ela própria comprara vinte anos antes, estavam as flores com que ela e Nicão esperavam pelos doentes…

4 D. Amália, uma das irmãs da primeira hora, conhecia-lhe os amigos e tudo fizera para que a enferma se sentisse à vontade.

A agonizante inteiriçou-se.

Alguém pediu a oração.

5 D. Amália cochichou aos ouvidos de Zeferino, informando que Dona Clara e Nicão estimavam fazer juntos a prece de Cáritas, nas ocasiões difíceis.

E Zeferino, de pé e cabeça erguida, orou em voz alta:


6 “Deus, Nosso Pai, que tendes poder e bondade, dai força àquele que passa pela provação, dai luz àquele que procura a verdade, ponde no coração do homem a compaixão e a caridade.

“Deus, dai ao viajor a estrela guia, ao aflito a consolação, ao doente, o repouso.

“Pai! dai ao culpado o arrependimento, ao espírito a verdade, à criança o guia, ao órfão o pai.

“Senhor, que a vossa bondade se estenda sobre tudo o que criastes.

“Piedade, Senhor, para aquele que vos não conhece, esperança para aquele que sofre. Que vossa bondade permita aos Espíritos consoladores derramarem, por toda parte, a paz, a esperança e a fé.

“Deus! Um raio, uma faísca do vosso amor pode abrasar a Terra; deixai-nos beber nas fontes dessa bondade fecunda e infinita, e todas as lágrimas secarão, todas as dores se acalmarão; um só coração, um só pensamento subirá até vós, como um grito de reconhecimento e de amor.

“Como Moisés, sobre a montanha, nós vos esperamos com os braços abertos, oh! poder, oh! bondade, oh! beleza, oh! perfeição, e queremos, de alguma sorte, alcançar a vossa misericórdia.

“Deus, dai-nos força de ajudar o progresso, a fim de subirmos até vós! dai-nos a caridade pura, dai-nos a fé e a razão, dai-nos a simplicidade que fará das nossas almas o espelho que possa refletir a vossa imagem. Assim seja.”


7 Os circunstantes choravam…

Dona Clara tinha a face coberta de palidez indefinível, como se fosse clareada por diferente luz. Pouco a pouco, o peito asserenou-se.

8 Todos pensavam em Nicão e decerto que o Espírito amigo e generoso estava presente, mas todos fixavam o semblante da morta, no qual se estampara fundo vinco de amargura e arrependimento, enquanto dos olhos embaciados e tristes manavam grossas lágrimas…


Hilário Silva


Texto extraído da 1ª edição desse livro.

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