I
1 Zeferino olhava, olhava… Tudo em derredor fazia pensar. Pensar no passado, voltar aos anos esquecidos…
2 Quarto penumbrento. Piso de tijolos, manchado e sujo. Cheiro de perfume e mofo. Pia descascada a um canto. Roupas humildes dependuradas em mancebo de pés quebrados. Pequena mesa com gaveta entreaberta, mostrando grande cópia de objetos miúdos. 3 Em mesa próxima, sobre o forro pisado, podia ver no lusco-fusco várias caixinhas de cosméticos, vidros de água-de-colônia, pó-de-arroz, escovas…
4 Retratos pendendo de parede defronte.
5 E, sob a lâmpada de poucas velas, os olhos de Zeferino pervagavam no espaço estreito, recordando, recordando…
II
1 Como se lembrava!…
O convite partira do dono da casa, seu velho amigo Nicão: “Vamos! Você nunca observou um fenômeno mediúnico… Vamos!”
2 Tentara esquivar-se, mas a insistência afetuosa vencera: “Vamos, você fará uma ideia… Minha esposa é médium… Será interessante! “
3 E lá se fora pela primeira vez. E pela primeira vez ouviu a palavra de Felício, o amigo espiritual infatigável, através da jovem esposa de Nicão. 4 Dona Clara, a médium, em seus vinte anos incompletos, era moça inteligente e afável. Incorporando a personalidade de Felício, fornecera-lhe tamanhas demonstrações da sobrevivência, além da morte, que ele não pudera resistir à verdade. 5 E o grupo, mais unido, passou a reunir-se duas vezes por semana. União e alegria. Trabalho e fraternidade.
6 Fora, ali, na singela residência de Nicão, que nascera realmente o templo espírita em que ele viu a razão da própria existência.
7 Recordava a inauguração da sede.
A felicidade transbordava como sol.
8 D. Clara pedira a construção de dois aposentos anexos à parte dos fundos. “Seria a semente de um albergue maior”, — dissera, sorrindo. 9 E ali, a casa recebera os primeiros enfermos da rua. Dois quartos, em que ele e os companheiros exercitavam a caridade, ao pé dos sofredores anônimos, aplicando socorros magnéticos e lavando feridas.
10 Depois, quando o templo ainda não completava dois anos, Nicão desencarnou de repente.
11 A princípio, D. Clara sustentou-se, mas, após alguns meses de solidão, ela, que não tivera filhos, desertou da obra espiritual.
12 Se procuravam por ela para a reunião, estava esgotada, temia o mau tempo, ia receber um parente ou tinha dor de cabeça.
13 A moradia, dantes calma, dava festas inconvenientes, enchendo-se de rapazes e moças alegres. Ele, Zeferino, e os irmãos de ideal compreenderam tudo, por fim…
III
1 Há quanto tempo acontecera isso?…
Respondia-lhe a memória: “Vinte anos! Vinte anos!…”
Quantos acontecimentos, após a fundação!
2 Sentado no tamborete capenga, rememorava os seus vinte e tantos anos de conhecimento espírita!…
Primeiros livros. Primeiras responsabilidades. Primeiros contatos da própria família com a Doutrina Espírita. Primeiros sintomas da própria mediunidade… O primeiro passe que administrou, em prece e lágrimas… O templo progredindo… Novos cooperadores. Novas experiências. A compreensão melhor do povo, a família de Jesus. Lutas. Dificuldades. Amadurecimento da fé. Certeza no “Mundo de Lá”. Gratidão aos princípios renovadores…
3 Mergulhando em reflexão, notou que alguém chegava… Era uma senhora de olhar desconfiado e humilde, mostrando lábios e cabelos pintados, a esconder um cigarro na mão fincada às costas.
4 — O senhor acha que Clarita melhora? — Perguntou.
— Quem sabe? — Respondeu Zeferino, — confiemos em Deus.
Mas a conversa não prosseguiu porque alguns companheiros entraram carregando velha maca. Zeferino levantou-se.
5 Penetrou o quarto em que D. Clara agonizava… No corpo que a tuberculose aniquilara, só os olhos faziam lembrar a antiga Dona Clara…
Ossos pontudos punham o esqueleto à mostra.
A doente trazia a garganta sufocada pela dispneia, mas a imensa lucidez do olhar falava de seu profundo reconhecimento aos amigos.
IV
1 A maca, em que colocaram a enferma, atravessou várias ruas, sob a curiosidade popular.
Por fim, o cortejo parou no pátio interno do templo espírita, à porta do abrigo que Dona Clara mandara construir em outro tempo.
2 Senhoras acolheram-na com bondade. Vários irmãos surgiam, prestimosos.
Cícero Pontes, presidente do conselho da instituição, chamou Zeferino à parte e falou baixinho:
— Mas escute… Esta mulher aqui…
3 Zeferino, porém, respondeu decidido:
— Esta mulher tem que ficar aqui mesmo… Esta mulher foi a esposa de Nicão… Você ou eu podíamos estar no lugar dele e tanto minha esposa quanto a sua podiam estar no lugar dela… Vamos dar graças a Deus de poder ajudar. Ela veio para a casa que ela própria construiu. Está no que é dela. 4 E, quando assim não fosse, tem mais direito ao templo do que nós, por ser mais sofredora. Jesus não veio para curar os sãos…
— Mas, mesmo na Doutrina… — Tornou Pontes, reticencioso.
5 — Doutrina é luz de Deus, mediunidade é trabalho dos homens, — replicou Zeferino, sereno. — A cidade inteira sabe que Dona Clara errou, todos sabemos que ela abandonou os seus deveres, mas é nossa irmã e a nossa obrigação é estender-lhe os braços…
V
1 Alguém chegou, procurando por Zeferino e Pontes. O médico, que haviam chamado, queria conversar.
O facultativo anunciou que nada tinha a fazer.
A doente estava no fim…
2 A comunidade, expectante, cercava o leito.
Dona Clara, envolvida em lençóis muito brancos, denunciava extrema lucidez nos grandes olhos.
3 Sim, tudo em torno despertava saudade! O aposento guardava as mesmas disposições de sua escolha. As paredes cor-de-rosa. A janela ampla trazendo o ar perfumado das laranjeiras. Na mesa pequena, que ela própria comprara vinte anos antes, estavam as flores com que ela e Nicão esperavam pelos doentes…
4 D. Amália, uma das irmãs da primeira hora, conhecia-lhe os amigos e tudo fizera para que a enferma se sentisse à vontade.
A agonizante inteiriçou-se.
Alguém pediu a oração.
5 D. Amália cochichou aos ouvidos de Zeferino, informando que Dona Clara e Nicão estimavam fazer juntos a prece de Cáritas, nas ocasiões difíceis.
E Zeferino, de pé e cabeça erguida, orou em voz alta:
6 “Deus, Nosso Pai, que tendes poder e bondade, dai força àquele que passa pela provação, dai luz àquele que procura a verdade, ponde no coração do homem a compaixão e a caridade.
“Deus, dai ao viajor a estrela guia, ao aflito a consolação, ao doente, o repouso.
“Pai! dai ao culpado o arrependimento, ao espírito a verdade, à criança o guia, ao órfão o pai.
“Senhor, que a vossa bondade se estenda sobre tudo o que criastes.
“Piedade, Senhor, para aquele que vos não conhece, esperança para aquele que sofre. Que vossa bondade permita aos Espíritos consoladores derramarem, por toda parte, a paz, a esperança e a fé.
“Deus! Um raio, uma faísca do vosso amor pode abrasar a Terra; deixai-nos beber nas fontes dessa bondade fecunda e infinita, e todas as lágrimas secarão, todas as dores se acalmarão; um só coração, um só pensamento subirá até vós, como um grito de reconhecimento e de amor.
“Como Moisés, sobre a montanha, nós vos esperamos com os braços abertos, oh! poder, oh! bondade, oh! beleza, oh! perfeição, e queremos, de alguma sorte, alcançar a vossa misericórdia.
“Deus, dai-nos força de ajudar o progresso, a fim de subirmos até vós! dai-nos a caridade pura, dai-nos a fé e a razão, dai-nos a simplicidade que fará das nossas almas o espelho que possa refletir a vossa imagem. Assim seja.”
7 Os circunstantes choravam…
Dona Clara tinha a face coberta de palidez indefinível, como se fosse clareada por diferente luz. Pouco a pouco, o peito asserenou-se.
8 Todos pensavam em Nicão e decerto que o Espírito amigo e generoso estava presente, mas todos fixavam o semblante da morta, no qual se estampara fundo vinco de amargura e arrependimento, enquanto dos olhos embaciados e tristes manavam grossas lágrimas…
Hilário Silva