O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XII — Janeiro de 1869.

(Idioma francês)

Processo das envenenadoras de Marselha.

(Sumário)

1. — O nome do Espiritismo achou-se envolvido casualmente neste caso deplorável. Um dos acusados, o ervanário Joye, disse dele ter-se ocupado, e que interrogava os Espíritos. Isto prova que fosse espírita e que se possa algo inferir contra a Doutrina? Sem dúvida os que a querem desacreditar não deixarão de aí buscar um pretexto para acusá-la; mas, se as diatribes da malevolência até hoje não deram resultado, é que sempre erraram o alvo, como aqui é o caso. Para saber se o Espiritismo incorre numa responsabilidade qualquer nesta circunstância, o meio é muito simples: é inquirir-se de boa fé, não entre os adversários, mas na própria fonte, o que prescreve e o que condena. Não há nada secreto; seus ensinamentos estão aos olhos de todos e cada um os pode controlar. Se, pois, os livros da Doutrina não encerram senão instruções capazes de levar ao bem; se condenam de maneira explícita e formal todos os atos desse homem, as práticas a que se entregou, o papel ignóbil e ridículo que ele atribui aos Espíritos, é que não colheu suas inspirações. Não há um homem imparcial que não convenha e não declare o Espiritismo fora desta questão.

O Espiritismo só reconhece como adeptos os que põem em prática os seus ensinamentos, isto é, que trabalham a sua própria melhora moral, porque é o sinal característico do verdadeiro espírita. Não é mais responsável pelos atos daqueles a quem agrada dizer-se espíritas, do que a verdadeira ciência pelo charlatanismo dos escamoteadores, que se intitulam professores de física, nem a sã religião pelos abusos cometidos em seu nome.

Diz a acusação, a propósito de Joye: “Encontrou-se em sua casa um registro que dá a ideia de seu caráter e de suas ocupações. Segundo ele, cada página teria sido escrita conforme o ditado dos Espíritos, e é cheio de ardentes suspiros por Jesus-Cristo. Em cada página fala-se de Deus e os santos são invocados. À margem, por assim dizer, há notas que podem dar uma ideia das operações habituais do ervanário:


“Para espiritismo, 4 fr. 25. – Doentes, 6 fr. – Cartas, 2 fr. – Malefícios, 10 fr. – Exorcismos, 4 fr. – Varinha de condão, 10 fr. – Malefícios por tiragem da sorte, 60 fr.” E muitas outras designações, entre as quais se encontram malefícios até estar saciado, e que terminam por esta menção: “Em janeiro fiz 226 francos. Os outros meses foram menos frutuosos.”


Alguma vez já se viu nas obras da Doutrina Espírita a apologia de semelhantes práticas, nem o que quer que seja capaz de provocá-las? Ao contrário, aí não se vê que ela repudia toda solidariedade com a magia, a feitiçaria, os sortilégios, os cartomantes, os adivinhos e todos os que fazem profissão de comércio com os Espíritos, pretendendo tê-los às suas ordens a tanto por sessão?

Se Joye fosse espírita, logo de começo teria olhado como uma profanação fazer intervirem os Espíritos em semelhantes circunstâncias; além disso, saberia que os Espíritos não estão às ordens de ninguém e nem vêm por encomenda, nem pela influência de qualquer sinal cabalístico; que os Espíritos são as almas dos homens que viveram na Terra ou em outros mundos, nossos pais, nossos amigos, nossos contemporâneos ou nossos antepassados; que foram homens como nós e que depois da nossa morte seremos Espíritos como eles; que os gnomos, duendes, diabretes e demônios são criações de pura fantasia e só existem na imaginação; que os Espíritos são livres, mais livres do que quando estavam encarnados, e que pretender submetê-los aos nossos caprichos e à nossa vontade, fazê-los agir e falar a nosso bel-prazer, para o nosso divertimento ou o nosso interesse, é uma ideia quimérica; que vêm quando querem, da maneira que querem e a quem lhes convém; que o objetivo providencial das comunicações com os Espíritos é nossa instrução e nossa melhoria moral, e não nos ajudar nas coisas materiais da vida, que podemos fazer ou encontrar por nós mesmos e, ainda menos, servir à cupidez; enfim, que em razão de sua própria natureza e do respeito que se deve às almas dos que viveram, é tão irracional quanto imoral manter escritório aberto para consulta ou exibição de Espíritos. Ignorar estas coisas é ignorar o á-bê-cê do Espiritismo; e quando a crítica o confunde com a cartomancia, a quiromancia, os exorcismos, as práticas da feitiçaria, os malefícios, os encantamentos, etc., ela prova que nada sabe sobre ele. Ora, negar ou condenar uma doutrina que não se conhece é faltar à lógica mais elementar atribuir-lhe ou fazê-la dizer precisamente o contrário do que diz, é calúnia ou parcialidade.

Uma vez que Joye envolvia em seus processos o nome de Deus, de Jesus e a invocação dos santos, também podia muito bem envolver o nome do Espiritismo, o que não prova mais contra a Doutrina do que o seu simulacro de devoção contra a sã religião. Ele não era, pois mais espírita porque interrogasse supostos Espíritos, do que as mulheres Lamberte e Dye não eram verdadeiramente piedosas, porque fossem queimar velas à Boa Mãe, Nossa Senhora da Guarda,  †  para o êxito de seus envenenamentos. Aliás, se ele fosse espírita, nem mesmo lhe teria vindo ao pensamento fazer servir à perpetuação do mal uma doutrina cuja primeira lei é o amor do próximo, e que tem por divisa: Fora da caridade não há salvação. (Ev) Se se imputasse ao Espiritismo a incitação de semelhantes atos, poder-se-ia, da mesma maneira, fazer a sua responsabilidade cair sobre a religião.


2. — A respeito, eis algumas reflexões do Opinion nationale, de 8 de dezembro:

“O jornal Le Monde acusa o jornal Siècle, os maus jornais, as más reuniões, os maus livros de cumplicidade no caso das envenenadoras de Marselha.  † 

“Lemos com dolorosa curiosidade os debates dessa estranha questão; mas não vimos em parte alguma que o feiticeiro Joye ou a feiticeira Lamberte tenham sido assinantes do Siècle, do Avenir ou do Opinion. Apenas um jornal foi encontrado em casa de Joye: era um número do Diable, journal de l’énfer. As viúvas que figuram nesse famoso processo estão muito longe de ser livre-pensadoras. Acendem velas à boa Virgem, para obter de Nossa Senhora a graça de envenenar tranquilamente os seus maridos. Encontra-se nesse negócio todo o velho apetrecho da Idade Média: ossos de defuntos colhidos nos cemitérios, disfarces que não passam de feitiços do tempo da rainha Margot. Todas essas senhoras foram educadas, não nas escolas de Elisa Lemmonier, mas entre as boas irmãs. Juntai às superstições católicas as superstições modernas, Espiritismo e outros charlatanismos. Foi o absurdo que conduziu essas mulheres ao crime. É assim que na Espanha, perto da foz do Ebro,  †  vê-se na montanha uma capela dedicada a Nossa Senhora dos Ladrões.

“Semeai a superstição e colhereis o crime.” É por isto que pedimos que se semeie a Ciência. “Esclarecei a cabeça do povo disse Victor Hugo, e não precisareis mais cortá-la.” — J. Labée.


3. — O argumento de que os acusados não eram assinantes de certos jornais não tem valor, pois se sabe que não é necessário ser assinante de um jornal para lê-lo, sobretudo nessa classe de indivíduos. O Opinion nationale poderia, pois, achar-se nas mãos de alguns dentre eles, sem que se tivesse o direito de tirar daí qualquer consequência contra esse jornal. Que teria dito se Joye tivesse alegado que se inspirou nas doutrinas desse periódico? Teria respondido: lede-o e vede se nele encontrareis uma única palavra capaz de superexcitar as más paixões. O padre Verger certamente tinha o Evangelho em casa; mais ainda: por sua condição, devia estudá-lo. Pode-se dizer que foi o Evangelho que o impeliu a assassinar o arcebispo de Paris? Foi o Evangelho que armou o braço de Ravaillac e de Jacques Clément?  †  que acendeu as fogueiras da Inquisição? E, contudo, foi em nome do Evangelho que todos esses crimes foram cometidos.

Diz o autor do artigo: “Semeai a superstição, e colhereis o crime.” Ele tem razão; mas erra quando confunde o abuso de uma coisa com a própria coisa. Se se quisesse suprimir tudo de que se pode abusar, muito pouco escaparia à proscrição, sem excetuar a imprensa. Certos reformadores modernos assemelham-se aos homens que desejam cortar uma boa árvore, porque dá alguns frutos estragados.

E acrescenta: “É por isto que pedimos que se semeie a Ciência.” Ele ainda tem razão, porque a Ciência é um elemento de progresso. Mas basta para a moralização completa? Não se veem homens pôr o seu saber a serviço de suas más paixões? Lapommeraie não era um homem instruído, um médico diplomado, desfrutando de um certo crédito e, além disso, um homem do mundo? Dava-se o mesmo com Castaing n  e tantos outros. Pode-se, pois, abusar da Ciência; deve-se, por isto, concluir que a Ciência seja uma coisa má? Porque um médico falhou, a falta deve recair sob todo o corpo médico? Por que, então, imputar ao Espiritismo a de um homem a quem aprouve dizer-se espírita, e não o era? A primeira coisa, antes de fazer um julgamento qualquer, era inquirir se ele teria encontrado na Doutrina Espírita máximas capazes de justificar seus atos. Por que a ciência médica não é solidária com o crime de Lapommeraie? Porque este último não colheu nos princípios dessa ciência a incitação ao crime; ele empregou para o mal os recursos que ela fornece para o bem. Entretanto, era mais médico do que Joye era espírita. É o caso de aplicar o provérbio: “Quando se quer matar seu cão, dize-se que está raivoso.”

A instrução é indispensável, ninguém o contesta; mas, sem a moralização, não passa de um instrumento, muitas vezes improdutivo para aquele que não sabe regular o seu uso com vistas ao bem. Instruir as massas sem as moralizar é pôr em suas mãos uma ferramenta sem lhes ensinar a utilizá-la, pois a moralização que se dirige ao coração não segue necessariamente a instrução que só se dirige à inteligência. Aí está a experiência para o provar. Mas, como moralizar as massas? É o de que menos se ocuparam, e por certo não será alimentando-as com a ideia de que não há Deus, nem alma, nem esperança, porque nem todos os sofismas do mundo demonstrarão que o homem que acredita que tudo começa e acaba com o corpo tenha mais fortes razões para esforçar-se por se melhorar, do que aquele que compreende a solidariedade existente entre o passado, o presente e o futuro. E, contudo, é essa crença no niilismo que uma certa escola de supostos reformadores pretende impor à Humanidade como o elemento por excelência do progresso moral.

Citando Victor Hugo, o autor esquece, ou melhor, nem desconfia der que este último tenha afirmado abertamente, em muitas ocasiões, sua crença nos princípios fundamentais do Espiritismo. É verdade que não é Espiritismo à maneira de Joye; mas quando não se sabe, pode-se confundir.

Por mais lamentável que seja o abuso praticado em nome do Espiritismo nesta questão, nenhum espírita se abalou com as consequências que pudessem resultar para a Doutrina. É que, com efeito, sendo sua moral inatacável, não podia ser atingida. Ao contrário, prova a experiência que não há uma só das circunstâncias que envolveram o nome do Espiritismo que não tenha redundado em seu proveito, pelo aumento do número de seus adeptos, porque o exame que a repercussão provoca só lhe pode ser vantajoso. Todavia, é de notar que, neste caso, com poucas exceções, a imprensa se absteve de qualquer comentário a respeito do Espiritismo. Há alguns anos ela teria alimentado suas colunas durante dois meses e não deixaria de apresentar Joye como um dos grandes sacerdotes da Doutrina. Igualmente pôde-se notar que, em seu requisitório, nem o presidente da corte, nem o procurador-geral insistiram na circunstância para dela tirar qualquer ilação. Só o advogado de Joye fez seu ofício de defensor como pôde.



[1] [Edme-Samuel Castaing, nasceu em Alençon, em 1796 e foi guilhotinado a 6 de dezembro de 1823, foi um famoso envenenador francês.]  † 


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