O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano IV — Dezembro de 1861.

(Idioma francês)

Meditações filosóficas e religiosas.

Ditadas ao Sr. Alfred Didier, médium, pelo Espírito de Lamennais.
(Sociedade Espírita de Paris.)  † 
(Sumário)

1. — Já publicamos um certo número de comunicações ditadas pelo Espírito Lamennais, cujo alcance filosófico pudemos observar. Por vezes o assunto era claramente indicado, mas também acontecia, com certa frequência, não ter um caráter bastante definido para que fosse fácil lhe dar um título. Tendo feito a observação ao Espírito, este respondeu que se propunha dar uma série de dissertações sobre assuntos variados, à qual sugeria o título genérico de Meditações filosóficas e religiosas, salvo a liberdade de dar um título particular aos assuntos que o comportassem. Suspendemos, então, a publicação até que tivéssemos um conjunto susceptível de ser coordenado. É essa publicação que começamos hoje e daremos continuidade nos próximos números.

Devemos fazer observar que os Espíritos chegados a um alto grau de perfeição são os únicos aptos a julgar as coisas de uma maneira completamente sã; que até lá, seja qual for o desenvolvimento de sua inteligência e mesmo de sua moralidade, podem estar mais ou menos imbuídos de suas ideias terrenas e ver as coisas de seu ponto de vista pessoal, o que explica as contradições muitas vezes encontradas em suas apreciações. Lamennais nos parece estar neste caso; sem dúvida há, em suas comunicações, muitas coisas boas e belas, como pensamento e como estilo, mas por certo há outras que podem prestar-se à crítica, cuja responsabilidade absolutamente não assumimos. Cada um é livre para aceitar o que achar bom e rejeitar o que parecer mau. Só os Espíritos perfeitos podem produzir coisas perfeitas. Ora, Lamennais que, sem a menor dúvida, é um Espírito bom e elevado, não tem a pretensão de já ser perfeito, de modo que o caráter sombrio, melancólico e místico do homem seguramente se reflete nesse Espírito e, por conseguinte, nas suas comunicações. Sob esse ponto de vista elas já seriam interessante motivo de observação.


2. [Meditações.]


I.


As ideias mudam, mas as ideias e os desígnios de Deus, jamais. A religião, isto é, a fé, a esperança, a caridade, uma só coisa em três, o emblema de Deus na Terra, fica inabalável em meio às lutas e preconceitos. A religião existe, antes de tudo, nos corações e, assim, não pode mudar. É no momento em que reina a incredulidade, em que as ideias se chocam e se entrechocam, sem proveito para a verdade, que aparece esta Aurora que vos diz: Venho em nome do Deus dos vivos, e não dos mortos; só a matéria é perecível, porque é divisível; mas a alma é imortal, porque é una e indivisível. Quando a alma do homem se enfraquece na dúvida sobre a eternidade, toma moralmente o aspecto da matéria; divide-se e, em consequência, estará sujeita às provas infelizes nas suas futuras reencarnações. A religião, pois, é a força do homem; diariamente ela assiste às novas crucificações que inflige ao Cristo; diariamente ouve as blasfêmias que lhe são atiradas na face; mas, forte e inquebrantável como a Virgem, assiste divinamente ao sacrifício de seu filho, porque possui em si a fé, a esperança e a caridade. A Virgem desvaneceu-se ante as dores do Filho do Homem, mas não está morta.


II.


SANSÃO.


Após uma leitura da Bíblia sobre a história de Sansão,  ( † ) vi em pensamento um quadro análogo ao do artista influente que a França acabe de perder, Decamps. Vi um homem de estatura colossal, membros musculosos, como o Dia, de Miguel Ângelo. Esse homem forte dormia ao lado de uma mulher que fazia queimar, à sua volta, perfumes tais como os orientais sempre souberam introduzir em seu luxo e em seus costumes delicados. Os membros desse gigante caíram em lassidão e um gatinho ora saltitava sobre ele, ora sobre a mulher junto a ele. A mulher curvou-se para ver se o gigante dormia; depois tomou uma tesourinha e se pôs a cortar a cabeleira ondulada do colosso; o resto já sabeis. — Homens armados investiram contra ele e o acorrentaram. Preso nas malhas de Dalila,  †  o homem chamava-se Sansão,  †  conforme mo disse um Espírito que logo vi junto a mim. Este homem representa a Humanidade enfraquecida pela corrupção, isto é, pela avidez e pela hipocrisia. Quando Deus estava com a Humanidade, levantou, como Sansão, as portas de Gaza;  †  quando a Humanidade teve por sustentáculo a liberdade, isto é, o Cristianismo, esmagou os seus inimigos, como sozinho o gigante esmagou o exército dos filisteus.  †  — Assim, respondi ao Espírito: A mulher que está junto dele… Não me deixou concluir e disse: “É a que substituiu a Deus; pense que não quero falar da corrupção dos séculos passados, mas do vosso.” Desde muito tempo Sansão e Dalila se haviam apagado diante dos meus olhos. Eu via o anjo, sempre só, que me disse a sorrir: “A Humanidade está vencida.” Então seu rosto tornou-se grave e profundo, e acrescentou: “Eis os três seres que devolverão à Humanidade seu vigor primitivo; eles se chamam Fé, Esperança e Caridade. Virão em alguns anos e fundarão uma nova doutrina, que os homens chamarão Espiritismo.”


III.

(Continuação.)

Cada fase religiosa da Humanidade possuiu a força divina materializada nas figuras de Sansão,  †  Hércules  †  e Rolando.  †  Um homem, armado com os argumentos da lógica, nos diria: “Eu vos adivinho; mas essa comparação me parece muito sutil e lenta.” É verdade; talvez não tenha vindo ao espírito de ninguém e, contudo examinemos. Ultimamente eu vos falei de Sansão, emblema da força da fé divina nos primeiros tempos. A Bíblia é um poema oriental; Sansão é a figura material dessa força impetuosa que derrubou Heliodoro no átrio do templo e que reuniu as ondas do mar Vermelho após havê-las separado. Esta grande força divina abateu exércitos e derrubou os muros de Jericó.  †  Os gregos, bem o sabeis, vieram do Egito e do Oriente. Esta tradição de Sansão não existia mais senão no domínio da filosofia e da história egípcia. Os gregos lapidaram os colossos de granito do Egito, armaram Hércules com uma maça e lhe deram a vida. Hércules fez seus doze trabalhos, abateu a hidra de Lerna,  †  a hidra dos sete pecados capitais, e tornou-se, nesse mundo pagão, o símbolo da força divina encarnada na Terra; dele fizeram um deus. Mas notai quais foram os vencedores desses dois gigantes. Como diz Lamartine, deve-se sorrir? chorar? Foram duas filhas de Eva: Dalila e Dejanira. Como vedes, a tradição, de Sansão e de Hércules é a mesma que a de Dalila e Dejanira.  †  Apenas Dalila tinha mudado o penteado das filhas do Faraó pelo diadema de Vênus.  † 

Pela noite, no famoso vale de Roncevaux,  †  um gigante, deitado numa ravina profunda, berrava o nome de Carlos Magno em gritos desesperados. Estava semiesmagado sob enorme rochedo, que suas mãos enfraquecidas em vão tentavam remover. Pobre Rolando! tua hora chegou; os bascos te insultam do alto do rochedo e ainda fazem rolar sobre ti enormes pedras. Entre os teus inimigos se encontram mulheres; talvez Rolando tenha amado uma: sempre Dalila e Dejanira. A História não o diz, mas isto é muito provável. Sempre foi dito que Rolando morreu como Sansão e Hércules. Discuti agora se quiserdes; mas creio, senhores, que esta comparação não me parece tão sutil. Qual será, nos tempos futuros, a personificação da força do Espiritismo? Quem viver verá, diz-se na Terra. Aqui se diz: O homem verá sempre.

Lamennais. n

(Continua no próximo número.)


3. MEDITAÇÕES FILOSÓFICAS E RELIGIOSAS.

DITADAS PELO ESPÍRITO DE LAMENNAIS.

(Sociedade Espírita de Paris. — Médium: Sr. A. Didier.)
[Revista de fevereiro de 1862.]

A CRUZ.


Em meio às revoluções humanas, em meio a todos os distúrbios, a todos as irrupções do pensamento, eleva-se uma cruz alta e simples, fixada num altar de pedra. Um jovenzinho esculpido na pedra tem nas mãos uma bandeirola, sobre a qual se lê esta palavra: Simplicitas [Simplicidade em latim]. Filantropos, filósofos, deístas e poetas: vinde ler e contemplar essa palavra; é todo o Evangelho, toda a explicação do Cristianismo. Filantropos, não inventeis a filantropia: não existe senão a caridade; filósofos, não inventeis uma sabedoria: só há uma; deístas, não inventeis um Deus: só existe um; poetas, não perturbeis o coração do homem. Filantropos, quereis quebrar as cadeias materiais que mantêm cativa a Humanidade; filósofos, elevais Panteões; poetas, idealizais o fanatismo. Para trás! Sois deste mundo, e o Cristo disse: “Meu reino não é deste mundo.” Oh! sois por demais deste mundo de lama, para compreenderdes estas sublimes palavras; e se algum juiz bastante poderoso vos disser: “Sois filhos de Deus?” vossa vontade morreria no fundo da garganta e não podereis responder como o Cristo, em face da Humanidade: “Vós o dissestes.” — “Vós todos sois deuses”,  ( † ) disse o Cristo, quando a língua de fogo desce sobre as vossas cabeças e penetra os vossos corações; sois todos deuses, quando percorreis a Terra em nome da caridade; mas sois filhos do mundo quando contemplais os sofrimentos atuais da Humanidade e não pensais em seu futuro divino. Homem! que aquela palavra seja lida por teu coração e não por teus olhos de carne. O Cristo não erigiu um Panteão:  †  ergueu uma cruz.


4. BEM-AVENTURADOS OS POBRES DE ESPÍRITO.


As diversas ações meritórias do Espírito após a morte são principalmente as do coração, mais que as da inteligência. Bem-aventurados os pobres de espírito não quer apenas dizer bem-aventurados os imbecis, mas também os que, cumulados de dons intelectuais, não o empregaram para o mal, pois é uma arma muito poderosa para arrastar as massas. Entretanto, como dizia ultimamente Gérard de Nervaln a inteligência desconhecida na Terra terá um grande mérito perante Deus. Com efeito, o homem poderoso em inteligência, lutando contra todas as circunstâncias infelizes que o vêm assaltar, deve regozijar-se com estas palavras: “Os primeiros serão os últimos, e os últimos serão os primeiros”  ( † ) o que não deve ser entendido unicamente na ordem material, mas, também, nas manifestações do Espírito e nas obras da inteligência humana. As qualidades do coração são meritórias, porque as circunstâncias que as podem impedir são muito pequenas, muito raras, muito fúteis. A caridade deve brilhar por toda parte, apesar de tudo, para todos, como o Sol brilha para todo o mundo. O homem pode impedir que a inteligência de seu próximo se manifeste, mas não dispõe de nenhum poder sobre o coração. As lutas contra a adversidade, as angústias da dor podem paralisar os impulsos do gênio, mas são incapazes de neutralizar os da caridade.


5. A ESCRAVIDÃO.


Escravidão! Quando se pronuncia este nome, o coração sente frio, porque vê à sua frente o egoísmo e o orgulho. Quando um padre vos fala de escravidão, está se referindo à escravidão da alma, que avilta o Espírito do homem e o faz esquecer a sua consciência, isto é, sua liberdade. Oh! sim, esta escravidão da alma é horrível e diariamente excita a eloquência de mais de um pregador. Mas a escravidão do hilota,  †  a escravidão do negro, que se torna aos seus olhos? Diante desta questão o sacerdote mostra a cruz e diz: “Esperai!” Com efeito, para esses infelizes, é a consolação a oferecer, e ela lhes diz: “Quando o vosso corpo for dilacerado pelo chicote até a morte, não penseis mais na Terra; pensai no Céu.”

Tocamos aqui uma dessas questões graves e terríveis que transtornam a alma humana e a precipitam na incerteza. Estará o negro à altura dos povos da Europa, e a prudência humana, ou, antes, a justiça humana deverá mostrar-lhe a emancipação como o meio mais seguro de alcançar o progresso da civilização? Nesta questão os filantropos apresentam o Evangelho e dizem: Jesus falou de escravos? Não; mas Jesus falou da resignação e disse estas sublimes palavras: “Meu reino não é deste mundo.”  ( † ) John Brown, quando contemplo o teu cadáver na forca, sinto-me tomado de profunda piedade e de apaixonada admiração; mas a razão, esta brutal razão que incessantemente nos faz buscar os porquês, leva-nos a nos perguntar a nós mesmos: “Que teríeis feito depois da vitória?”

Lamennais.


Allan Kardec.



Paris. — Typ. COSSON ET Cº, rue du Four-St-Germain, 43.  † 


[1] [v. Lamennais.]


[2] Alusão a uma comunicação de Gérard de Nerval.


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