O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano II — Dezembro de 1859.

(Idioma francês)

Resposta ao Sr. Oscar Comettant.

 

Senhor,

Consagrastes aos Espíritos e aos seus partidários o folhetim do Siècle de 27 de outubro último. A despeito do ridículo que lançais sobre uma questão muito mais séria do que pensais, apraz-me reconhecer que, atacando o princípio, guardais as conveniências pela urbanidade da forma, visto não ser possível dizer com mais polidez que não temos bom-senso. Assim, não confundirei o vosso espirituoso artigo com essas diatribes grosseiras que dão uma triste ideia do “bom-gosto” de seus autores, aos quais fazem justiça todas as pessoas distintas, sejam ou não nossas partidárias.

Como não tenho o hábito de responder às críticas, teria deixado passar o vosso artigo, como tantos outros, se dos Espíritos não tivesse o encargo, primeiramente, de vos agradecer por vos terdes ocupado deles e, depois, para vos dar um conselho. Bem compreendeis, senhor, que de mim mesmo não me permitiria fazê-lo; desincumbo-me de minha tarefa, eis tudo. — “Como! — direis — então os Espíritos se ocupam de um folhetim que escrevi sobre eles? Seria muita bondade de sua parte.” — Certamente, pois estavam ao vosso lado quando escrevíeis. Um deles, que vos quer bem, chegou mesmo a tentar impedir que utilizásseis certas reflexões, que julgava não estar à altura de vossa sagacidade, temendo por vós a crítica, não dos Espíritos, com os quais pouco vos preocupais, mas dos que conhecem o alcance do vosso julgamento. Ficai certo de que eles estão por toda parte, sabem tudo quanto se diz e se faz e, no momento em que lerdes estas linhas, estarão ao vosso lado, observando-vos. Mas, direis:

— “Não posso crer na existência desses seres que povoam o espaço, mas que não vemos.”

— Credes no ar, que não vedes e que, no entanto, vos envolve?

— “Isto é muito diferente. Creio no ar porque, mesmo não o vendo, sinto-o, ouço-o bramir na tempestade e ressoar no tubo da chaminé; vejo os objetos que ele derruba.”

— Pois bem! Os Espíritos também se fazem ouvir; também movem os corpos pesados, levantam-nos, transportam-nos, quebram-nos.

— “Ora, pois, Sr. Allan Kardec! Apelai para a vossa razão. Como quereis que seres impalpáveis, supondo que eles existam, o que só admitiria se os visse, tenham esse poder? Como podem seres imateriais agir sobre a matéria? Isto não é racional.”

— Credes na existência dessas miríades de animálculos que estão em vossa mão e que a ponta de uma agulha pode cobrir milhares?

— “Sim, porque se não os vejo com os olhos o microscópio me faz vê-los.

— Mas antes da invenção do microscópio, se alguém vos tivesse dito que tendes sobre a pele milhares de insetos que nela pululam; que uma gota de água límpida encerra toda uma população; que os absorveis em massa com o ar mais puro que respirais, que teríeis respondido? Teríeis gritado contra o absurdo e, se fôsseis folhetinista, não teríeis deixado de escrever um belo artigo contra os animálculos, o que não os impediria de existir. Hoje o admitis porque o fato é patente, mas antes teríeis declarado que era coisa impossível. Que há, pois, de irracional na crença de que o espaço seja povoado de seres inteligentes que, embora invisíveis, de modo algum são microscópicos? Quanto a mim, confesso que a ideia de seres pequenos como uma parcela homeopática e, no entanto, providos de órgãos visuais, reprodutores, circulatórios, respiratórios, etc., me parece ainda mais extraordinário.

— “Concordo; mas, ainda uma vez, são seres materiais, representam alguma coisa, enquanto os vossos Espíritos são o quê? Nada; apenas seres abstratos, imateriais.”

— Em primeiro lugar, quem vos disse que são imateriais? A observação — pesai bem esta palavra observação, que não quer dizer sistema — a observação, repito, demonstra que essas inteligências ocultas têm um corpo, um envoltório, invisível é verdade, — mas não menos real. Ora, é por este intermediário semimaterial que eles agem sobre a matéria. Serão apenas os corpos sólidos que têm uma força motriz? Não são, ao contrário, os corpos rarefeitos, como o ar, o vapor, todos os gases e a eletricidade que possuem esse poder no mais alto grau? Por que então o negaríeis à substância que constitui o envoltório dos Espíritos?

— “De acordo. Mas se em certos casos essas substâncias são invisíveis e impalpáveis, a condensação pode torná-las visíveis e mesmo sólidas. Podemos pegá-las, guardá-las, analisá-las, de modo que a sua existência é demonstrada de maneira irrecusável.”

— Ora essa! Negais os Espíritos porque não podeis metê-los num tubo de ensaio e saber se são compostos de oxigênio, hidrogênio e azoto. Dizei-me se antes das descobertas da química moderna conhecia-se a composição do ar, da água, e as propriedades dessa imensidão de corpos invisíveis, cuja existência nem suspeitávamos. Que teriam dito, então, a quem anunciasse todas as maravilhas que hoje admiramos? Tê-lo-iam tratado de charlatão, de visionário. Suponhamos que vos caia nas mãos um livro de um sábio daquele tempo, negando todas essas coisas e que, além disso, tivesse procurado demonstrar a sua impossibilidade. Diríeis: Eis aí um sábio muito presunçoso, que se pronunciou muito levianamente, decidindo sobre o que não sabia; para sua reputação teria sido melhor abster-se. Numa palavra, não faríeis um juízo muito favorável de sua opinião. Pois bem! Em alguns anos veremos o que se pensará daqueles que hoje tentam demonstrar que o Espiritismo é uma quimera.

É sem dúvida lamentável para certas pessoas, como para certos colecionadores, que os Espíritos não possam ser postos dentro de um garrafão de vidro, a fim de serem observados à vontade; não imagineis, entretanto, que eles escapem aos nossos sentidos de maneira absoluta. Se a substância que compõe o seu envoltório é invisível em estado normal, também pode, em certos casos, como o vapor, mas por outra causa, experimentar uma espécie de condensação ou, para ser mais exato, uma modificação molecular que a torna momentaneamente visível e mesmo tangível. Então podemos vê-los, como nos vemos, tocá-los, apalpá-los; eles podem pegar-nos e deixar impressão sobre os nossos membros. Apenas esse estado é temporário; podem deixá-lo tão rapidamente quanto o tomaram, não em virtude de uma rarefação mecânica, mas por efeito da vontade, considerando-se que são seres inteligentes e não corpos inertes. Se a existência dos seres inteligentes que povoam o espaço está provada; se, como acabamos de ver, exercem uma ação sobre a matéria, que há de surpreendente em que possam comunicar-se conosco e transmitir seus pensamentos por meios materiais?

“Tudo bem, caso a existência desses seres seja provada. Mas aí é que está o problema.”

Inicialmente, o importante é provar essa possibilidade: a experiência fará o resto. Se para vós essa existência não está provada, está para mim. Ouço daqui que dizeis intimamente: Eis um argumento muito frágil. Admito que minha opinião pessoal tenha pouco peso, mas não estou só. Antes de mim, muitos outros pensavam do mesmo modo, porquanto não inventei nem descobri os Espíritos. Essa crença conta milhões de aderentes, tanto ou mais inteligentes do que eu. Entre os que creem e os que não creem, quem decidirá?

— “O bom-senso”, direis.

— Seja. Mas acrescento: e o tempo, que diariamente nos vem em auxílio. Mas com que direito os que não creem se arrogam o privilégio do bom-senso, sobretudo quando justamente os que acreditam são recrutados, não entre os ignorantes, mas entre pessoas esclarecidas, cujo número cada dia cresce? Eu o julgo por minha correspondência, pelo número de estrangeiros que me visitam, pela aceitação de meu jornal, que completa o seu segundo ano e conta com assinantes nas cinco partes do mundo, nas mais elevadas camadas da sociedade e até nos tronos. Dizei-me, em consciência, se isso é a trajetória de uma ideia vazia, de uma utopia.

Constatando esse fato capital em vosso artigo, dizeis que ele ameaça tomar as proporções de um flagelo e aditais: “Já não lidava a espécie humana, ó bom Deus! com futilidades suficientes para lhe perturbar a razão, antes mesmo que essa nova doutrina viesse apoderar-se de nosso pobre cérebro?” Parece que não apreciais as doutrinas; cada um tem o seu gosto. Nem todos gostam das mesmas coisas. Direi apenas que não sei a que papel intelectual o homem seria reduzido, se, desde que se acha na Terra, não tivessem surgido doutrinas que, fazendo-o refletir, o tirassem do estado passivo do bruto. Sem dúvida, há boas e más, justas e falsas, mas foi para discerni-las que Deus nos deu a razão. Esquecestes uma coisa: a definição clara e categórica daquilo que classificais entre as futilidades. Há pessoas que assim tacham todas as ideias de que não compartilham. Mas tendes inteligência em demasia para acreditar que esta se tenha concentrado apenas em vós. Há outras pessoas que atribuem esse nome a qualquer opinião religiosa, considerando a crença em Deus, na alma e na sua imortalidade, nas penas e recompensas futuras de utilidade limitada às mulheres do povo ou às crianças que se deseja amedrontar. Não conheço vossa opinião a respeito, contudo, pelos juízos que emitistes, algumas pessoas poderiam inferir que aceitais um pouco essas ideias. Quer as partilheis ou não, tomo a liberdade de dizer, como muitos outros, que nelas estaria o verdadeiro flagelo, caso se propagassem. Com o materialismo, que é a crença de que morremos como animais, que depois de nós será o nada, o bem não terá nenhuma razão de ser, os laços sociais nenhuma consistência: é a sanção do egoísmo. A lei penal será o único freio a impedir o homem de viver à custa de outrem. Se fosse assim, com que direito puniríamos o homem que mata o semelhante para apoderar-se de seus bens? Porque é um mal, diríeis vós. Mas por que esse mal? Ele vos responderá: Depois de mim não há nada; tudo se acaba; nada tenho a temer; quero viver aqui o melhor possível e, para isso, tomarei dos que têm. Quem mo proíbe? Vossa lei? Vossa lei terá razão se for mais forte, isto é, se me pegar. Mas se eu for mais astucioso, se lhe escapar, a razão estará comigo.

Qual a sociedade, pergunto, que poderá subsistir com semelhantes princípios? Isto me lembra o seguinte fato: Um senhor que, como se diz vulgarmente, não acreditava em Deus, nem no diabo, e não o negava, notou que desde algum tempo vinha sendo roubado por seu criado. Um dia surpreendeu-o em flagrante e lhe disse: Como ousas, infeliz, tomar o que te não pertence? O doméstico pôs-se a rir e respondeu: Por que deveria crer, se também não credes? Por que tendes mais do que eu? Se eu fosse rico e vós pobre, quem vos impediria de fazer o que faço? Dei azar desta vez — eis tudo. De outra, cuidarei de agir melhor.

Aquele senhor teria ficado mais contente se o doméstico não tivesse tomado a crença em Deus como uma futilidade. É a essa crença e às que dela decorrem que deve o homem a sua verdadeira segurança social, muito mais que à severidade da lei, porque a lei não pode tudo alcançar. Se a crença se arraigasse no coração de todos, nada teriam a temer uns dos outros. Assestar as baterias contra ela é soltar a rédea a todas as paixões, é aniquilar todos os escrúpulos. Foi isso que levou recentemente um sacerdote, quando lhe pediram opinasse sobre o Espiritismo, a dizer estas sensatas palavras: O Espiritismo conduz à crença em alguma coisa. Ora, eu prefiro aqueles que acreditam em alguma coisa aos que em nada creem, pois estes não acreditam nem mesmo na necessidade do bem.

Com efeito, o Espiritismo é a destruição do materialismo. É a prova patente, irrecusável, daquilo que certas pessoas chamam futilidades, a saber: Deus, a alma, a vida futura, feliz ou infeliz. Este flagelo, como o chamais, tem outras consequências práticas. Se soubésseis, como eu, quantas vezes fez ele voltar a calma aos corações ulcerados pela mágoa; que doce consolação tem espalhado sobre as misérias da vida; quanto ódio tem acalmado, quantos suicídios tem impedido, não zombaríeis tanto. Suponde que um de vossos amigos venha dizer-vos “Eu estava desesperado; ia estourar os miolos; mas hoje, graças ao Espiritismo, sei quanto isto me custa e desisto totalmente.” Se outro indivíduo vos disser: “Eu invejava o vosso mérito, a vossa superioridade; vosso sucesso impedia-me de dormir; queria vingar-me, derrotar-vos, arruinar-vos, até mesmo matar-vos. Confesso que correstes grandes perigos. Hoje, porém, que sou espírita, compreendo tudo quanto esses sentimentos têm de ignóbil e os abjuro. E, em vez de vos fazer mal, venho prestar-vos um serviço.” Provavelmente direis: “Ótimo! Ainda bem que existe algo de bom nessa loucura.”

O que estou dizendo, senhor, não visa convencer-vos nem vos induzir às minhas ideias. Tendes convicções que vos satisfazem e que, para vós, resolvem todas as questões do futuro: é, pois, muito natural que as conserveis. Mas me apresentais aos vossos leitores como o propagador de um flagelo; eu tinha que lhes mostrar que seria desejável que todos os flagelos não fizessem maior mal, a começar pelo materialismo, de modo que conto com a vossa imparcialidade para lhes transmitir minha resposta.

“Mas, direis, não sou materialista. Pode-se muito bem não ser materialista e, mesmo assim, não acreditar na manifestação dos Espíritos.” — De acordo: então sois espiritualista e não espírita. Se me equivoquei quanto à vossa maneira de ver, é porque tomei ao pé da letra a profissão de fé colocada no fim do vosso artigo. Dizeis: “Creio em duas coisas: no amor dos homens por tudo quanto é maravilhoso, ainda que esse maravilhoso seja absurdo, e no editor que me vendeu o fragmento da sonata ditada pelo Espírito de Mozart, ao preço de 2 francos.” Se toda vossa crença se resume nisso, tudo bem: a mim parece a prima irmã do cepticismo. Mas aposto que credes em algo mais do que no Sr. Ledoyen, que vos vendeu por 2 francos um fragmento de sonata: acreditais no produto de vossos artigos, pois presumo que, salvo engano, não os ofereceis pelo amor de Deus, como o Sr. Ledoyen não oferece os seus livros. Cada um tem o seu ofício: o Sr. Ledoyen vende livros, o literato vende prosa e verso. Nosso pobre mundo não se encontra ainda bastante adiantado para que possamos morar, comer e vestir-nos de graça. Talvez um dia os proprietários, os alfaiates, os açougueiros e os padeiros estejam suficientemente esclarecidos para compreender que é ignóbil para eles pedir dinheiro; então os livreiros e os literatos serão arrastados pelo exemplo.

“Com tudo isto não me destes o conselho que me oferecem os Espíritos.” — Ei-lo: É prudente não nos pronunciarmos muito levianamente sobre aquilo que não conhecemos; imitemos a sábia reserva do sábio Arago, a propósito do magnetismo animal: “Eu não poderia aprovar o mistério com que se envolvem os cientistas sérios que hoje vão assistir às experiências de sonambulismo. A dúvida é uma prova de modéstia e raramente prejudica o progresso das ciências. Já não diríamos o mesmo da incredulidade. Aquele que, fora das matemáticas puras, pronuncia a palavra IMPOSSÍVEL, falta com a prudência. A reserva é um dever, sobretudo quando se trata da organização animal.” (Notícia sobre Bailly). [v. também na Revista de agosto de 1860: Perguntas de um Espírita de Sétif ao Sr. Oscar Comettant.]

Aceitai, etc.

Allan Kardec.


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