A maioria dos espíritas conhece as obras básicas da Doutrina Espírita, especialmente O Livro dos Espíritos, repositório de seus princípios fundamentais, e que Allan Kardec desdobrou nos demais volumes que constituem a Codificação Espírita.
Muitos, no entanto, ignoram as dificuldades que Kardec enfrentou para que a Doutrina Espírita se tornasse conhecida e praticada naqueles tempos tão difíceis do século XIX, justamente por não compulsarem outros escritos que ele deixou, enfocando de maneira surpreendente suas diretrizes para o Movimento Espírita.
Os estudiosos que desejarem conhecer os primeiros passos do Movimento Espírita nascente encontrarão farto material para suas pesquisas na Revista Espírita de Allan Kardec, notadamente nos volumes referentes a 1860, 1861, 1862, 1864 e 1867, anos em que o Codificador da Doutrina Espírita, aproveitando as férias de verão da Sociedade Espírita de Paris, deslocou-se da capital francesa para visitar algumas cidades do interior da França, alcançando, em 1864, Antuérpia † e Bruxelas, † na Bélgica.
Hoje, com o avanço da tecnologia e a rapidez dos meios de comunicação, o mundo tornou-se pequeno e acessível à significativa parcela de sua população. É possível tomar-se um avião pela manhã, em Paris, † e chegar no mesmo dia em Brasília. † Muito diverso, porém, era o panorama existente na época de Allan Kardec. Para fazer a sua Viagem Espírita em 1862, o Codificador precisou de quase dois meses para percorrer 693 léguas e visitar cerca de vinte cidades, e isto porque a França, na metade do século XIX, já possuía uma malha ferroviária que cortava o país em todas as direções e cujos trens trafegavam na incrível velocidade de 50 quilômetros por hora…
De todas as viagens de Allan Kardec, realizadas a serviço da Doutrina Espírita, a de 1862 foi a mais importante, merecendo dele um opúsculo especial, publicado no mesmo ano, riquíssimo em observações sobre o estado do Espiritismo — que então comemorava o seu quinto aniversário — e em instruções sobre a formação de Grupos e Sociedades Espíritas, afora os conselhos e orientações que prodigalizava aos adeptos da novel Doutrina.
E o que buscava Kardec nessas viagens? É ele mesmo que no-lo revela em “Impressões Gerais” desta obra “ (…) nossa viagem tinha duplo objetivo: dar instruções onde estas fossem necessárias e, ao mesmo tempo, nos instruirmos. Queríamos ver as coisas com os nossos próprios olhos, para julgar do estado real da Doutrina e da maneira pela qual ela é compreendida; estudar as causas locais favoráveis ou desfavoráveis ao seu progresso, sondar as opiniões, apreciar os efeitos da oposição e da crítica e conhecer o julgamento que se faz de certas obras. Estávamos desejosos, sobretudo, de apertar a mão de nossos irmãos espíritas e de lhes exprimir pessoalmente a nossa mui sincera e viva simpatia, retribuindo as tocantes provas de amizade que nos dão em suas cartas; de dar, em nome da Sociedade de Paris, e em nosso próprio nome, em particular, um testemunho especial de gratidão e de admiração a esses pioneiros da obra que, por sua iniciativa, seu zelo desinteressado e seu devotamento, constituem os seus primeiros e mais firmes sustentáculos, marchando sempre para frente, sem se inquietarem com as pedras que lhes atiram e pondo o interesse da causa acima do interesse pessoal.” E, mais adiante, arremata: “Sob vários pontos de vista, nossa viagem foi muito satisfatória e, sobretudo, muito instrutiva pelas observações que recolhemos. Se pudessem restar algumas dúvidas quanto ao caráter irresistível da marcha da Doutrina e à impotência dos ataques, sobre a sua influência moralizadora, sobre o seu futuro, o que vimos bastaria para dissipá-las.”
Durante todo o tempo em que codificou a Doutrina Espírita, Allan Kardec permitiu-se apenas uma viagem de lazer. n Em agosto de 1864, pouco antes de visitar os espíritas de Antuérpia e Bruxelas, na Bélgica, ele esteve na Suíça, demorando-se nas cidades de Neuchâtel, † Berna, † Zimmerwald, † Interlaken, † Oberland, † Friburgo, † Lausanne, † Vevey † e Genebra, † conhecendo os vales de Lauterbrunnen † e Grindelwald, † os lagos de Brienz † e Léman, † as cachoeiras de Staubach e Giesbach, † e o castelo de Chillon. † Mesmo assim, e para provar que nunca se furtava ao trabalho, aproveitou a ocasião para observar e estudar in loco o estranho fenômeno de um camponês das cercanias de Berna, que gozava da faculdade de descobrir fontes d’água e ver no fundo de um copo as respostas às perguntas que lhe eram feitas, inclusive imagens de pessoas e lugares. n
Era nossa intenção inicial compor este volume apenas com a tradução integral da Viagem Espírita em 1862. Lembrando-nos, contudo, dos discursos pronunciados nas demais viagens que Kardec empreendeu, na França e na Bélgica, bem como das apreciações que houve por bem fazer acerca de cada uma delas no seu Jornal de Estudos Psicológicos, acudiu-nos a ideia de agregá-los a este livro, sob a forma de apêndice, por guardarem estreita conexão com a matéria tratada nesta obra. Todos os textos foram extraídos da 1ª edição da Revista Espírita, editada pela Federação Espírita Brasileira nos anos de 2004 e 2005. n
Brasília (DF), 3 de outubro de 2005.
Evandro Noleto Bezerra.
Tradutor.
[1] Biographie d’Allan Kardec, de Henri Sausse, Paris: Éditions Pygmalion-Gérard, 1993, p. 78.
[2] Vide a Revista Espírita de outubro de 1864. Tradução de Evandro Noleto Bezerra. 1ª ed. Rio de Janeiro: FEB, 2004, p. 390-397.
[3] N. do T.: Alguns artigos extraídos da Revista Espírita tiveram seus títulos ligeiramente modificados ao serem transcritos para esta obra, de modo a melhor caracterizar as viagens espíritas a que se referiam.