Em face das dificuldades surgidas com a morte do Sr. Allan Kardec, e para não deixar em suspenso os graves interesses que ele sempre soube salvaguardar, com tanta prudência quanto sabedoria, a Sociedade de Paris † foi levada, no mais curto prazo, a se constituir de maneira regular e estável, tanto para as providências junto às autoridades, quanto para tranquilizar os espíritos timoratos sobre as consequências do acontecimento imprevisto que, repentinamente, feriu toda a grande família espírita.
Não duvidamos de que os nossos leitores nos agradecerão por lhes darmos, a respeito, os mais precisos detalhes. É por isso que nos apressamos a lhes dar a conhecer as decisões da Sociedade, condensadas nos discursos do Sr. Levent, vice-presidente da antiga Comissão, e do novo presidente, Sr. Malet, que reproduzimos integralmente. [A. DESLIENS]
(Sociedade de Paris, 9 de abril de 1869.)
Tomando a palavra em nome da Comissão, o Sr. Levent se exprime nestes termos:
“Senhores,
“É ainda sob a dolorosa impressão que a todos nos causou a inesperada libertação do nosso saudoso presidente, que hoje inauguramos o novo local de nossas reuniões hebdomadárias.
“Antes de retomar os nossos estudos habituais, paguemos ao nosso venerado mestre um justo tributo de reconhecimento pelo zelo infatigável que dedicava a estes trabalhos, pelo desinteresse absoluto, pela completa abnegação de si mesmo, pela perseverança de que sempre deu exemplo na direção desta Sociedade, por ele presidida desde a sua fundação.
“Esperemos que tão nobre exemplo não seja perdido; que tantos trabalhos não fiquem estéreis e que a obra do mestre seja continuada; numa palavra, que ele não tenha semeado em terra ingrata.
“Vossa Comissão é de opinião que, para obter este resultado tão desejado, duas coisas importantes são indispensáveis: 1º a mais completa união entre todos os societários; 2º o respeito ao programa novo que o nosso saudoso presidente, na sua solicitude esclarecida e em sua lúcida previsão, tinha preparado há alguns meses e publicado na Revista de dezembro último.
“Peçamos todos ao soberano Mestre que permita a esse grande Espírito, que acaba de entrar na pátria celestial, nos ajudar com suas luzes e continuar a presidir espiritualmente esta Sociedade, que é sua obra pessoal e que tanto estimava.
“Caro e venerado mestre, que estais aqui presente, embora invisível para nós, recebei de todos os vossos discípulos, que quase todos foram vossos amigos, esse singelo testemunho de seu reconhecimento e de sua afeição, que se estendem, não o duvideis, à corajosa companheira de vossa existência terrestre. Ela ficou entre nós muito triste, muito solitária, mas consolada, quase feliz, pela certeza de vossa felicidade atual.
“– Senhores, diante da perda irreparável que acaba de sofrer a Sociedade, a Comissão, cujos poderes regulares cessaram a 1º de abril, julgou por bem continuar suas funções.
“Desde o primeiro deste mês a Comissão já se reuniu duas vezes, a fim de deliberar imediatamente e não deixar um só instante a Sociedade Parisiense de Estudos Espíritas sem direção legal, aceita e reconhecida.
“Reconheceis, senhores, como a vossa diretoria, que havia essa necessidade absoluta.
“As providências a tomar junto à administração, a fim de a prevenir da mudança de presidente e da sede da Sociedade; “As relações de nossa Sociedade Parisiense com as outras Sociedades estrangeiras, todas já informadas do falecimento do Sr. Allan Kardec e que, na sua maioria, já nos manifestaram seu sincero pesar;
“A correspondência tão numerosa, cuja resposta é indispensável; enfim, muitas outras razões sérias, que são melhor pressentidas do que explicadas;
“Todos esses motivos levaram a vossa Comissão atual a vos apresentar uma lista de sete nomes que devem compor a nova diretoria para o ano de 1869-1870, e que seriam: os. Srs. Levent, Malet, Canaguier, Ravan, Desliens, Delanne e Tailleur.
“Como notareis, senhores, a maioria dos membros da antiga diretoria faz parte desta nova lista.
“Por unanimidade vossa Comissão designou para presidente o Sr. Malet, cujos títulos para esta nova posição são numerosos e perfeitamente justificados.
“O Sr. Malet reúne todas as grandes qualidades necessárias para assegurar à Sociedade uma direção firme e sábia. – Vossa diretoria é mesmo de opinião que seria o caso de agradecer ao Sr. Malet por se haver dignado aceitar esta função, que está longe de ser uma sinecura, sobretudo agora.
“Por isso, é com confiança que vos pedimos aceiteis esta proposta e voteis esta lista por aclamação.
“Fora dos motivos expostos acima, uma outra razão, grave e séria, determinou vossa diretoria atual a vos apresentar esta proposição.
“É seu grande desejo, que também partilhareis, esperamos, o de nos aproximarmos cada vez mais do plano de organização concebido pelo Sr. Allan Kardec, e que ele vos deveria propor este ano, no momento de renovação da diretoria.
“O Sr. Allan Kardec não deveria aceitar senão a presidência honorária, e sabíamos que sua intenção era vos apresentar o Sr. Malet como candidato à presidência. Somos felizes por realizar o desejo daquele que todos lamentamos
“Em consequência, senhores, em nome de vossa antiga diretoria, que tenho a honra de representar, eu vos peço que aceiteis a seguinte proposição:
“São nomeados membros da diretoria para o ano 1869-1870: os Srs. Levent, Malet, Canaguier, Ravan, Desliens, Delanne e Tailleur, sob a presidência do Sr. Malet.”
Levent.
Vice-Presidente.
Aceita a proposição e ratificada por aclamação unânime, o Sr. vice-presidente deu posse imediatamente ao Sr. Malet como presidente da Sociedade.
(Sessão de 9 de abril de 1869.)
Senhoras, Senhores,
Antes de tomar posse desta cadeira, onde desde tantos anos tivestes a felicidade de ver e ouvir esse eminente filósofo, a quem cada um de nós deve a luz e a tranquilidade da alma, permiti que aquele que chamastes a presidir as vossas reuniões venha dizer algumas palavras quanto à marcha que pretende seguir e o espírito com o qual pretende dirigir os vossos trabalhos.
Gostaria de o fazer com esse tom e essa simplicidade que são a expressão das convicções profundas! Gostaria de o fazer, mas, sob o império de uma emoção que não posso dominar, e que vos é fácil compreender, sinto que não o poderia, se não chamasse em meu auxílio as poucas linhas que vou ler.
É que, com efeito, senhores, quando apenas há algumas semanas eu solicitava o favor de entrar em vossas fileiras, como membro livre da Sociedade de estudos Espíritas de Paris, estava longe de pensar que um dia fosse chamado para presidir as suas sessões, e muito mais longe ainda de pensar que a partida imprevista do nosso caro e venerado mestre me chamasse a dirigir, com o vosso concurso, essas interessantes sessões, onde cada dia se elucidam as mais árduas e as mais complexas questões.
Mas, como acaba de dizer o nosso vice-presidente, e me limito a vo-lo repetir, é como membro da Comissão e simples delegado anual, designado por vossa escolha, que aceitei essa difícil função, em conformidade, aliás, com as regras prescritas pela organização nova, que nos deixou nosso mestre.
Com efeito, senhores, qual de nós ousaria suceder sozinho a uma tão grande personalidade como a que encheu o mundo com os seus altos e consoladores estudos, ensinando ao homem de onde ele vem, por que está na Terra e para onde vai depois? Quem seria bastante orgulhoso para se julgar à altura de sua lógica, de sua energia e de sua profunda erudição, quando ele mesmo, esmagado por um trabalho sempre crescente, havia reconhecido que uma comissão de seis trabalhadores sérios e dedicados que, sem dúvida, .deveria ser dobrada em futuro próximo, não seria bastante numerosa para fazer face aos desenvolvimentos dos estudos da Doutrina?
Sim, senhores, se correspondi ao desejo que me manifestastes, é porque os atos devem estar sempre em relação com as palavras. Eu havia prometido meu concurso enérgico, quando me admitistes entre vós, e por mais difícil que seja o momento, não recusei o mandato que me oferecestes, por mais fracas que sejam minhas forças, persuadido de que elas serão ajudadas vigorosamente por nossa Comissão, por todos vós, meus irmãos em crença e, enfim, por nossos Espíritos protetores, em cujo número hoje se acha o nosso caro e afeiçoado presidente.
Nosso dever, a missão de todos nós, senhores, de agora em diante é seguir o sulco traçado pelo mestre, quero dizer, aprofundá-lo, alargá-lo mais, mais do que estendê-lo ao longe, até a hora em que um novo enviado, esclarecedor do futuro, venha plantar novas balizas e traçar uma nova etapa! Realizemos a nossa tarefa e, por mais modesta que ela possa parecer a alguns espíritos ardentes ou, talvez, muito impacientes, o seu campo é bastante vasto para que cada um de nós possa dizer, ao terminar sua jornada: “Um repouso feliz me espera, pois eu era do número daqueles que trabalharam na vinha do Senhor”.
Mas, para alcançar tal objetivo, o esforço deve estar na razão direta de sua grandeza. Pesquisadores infatigáveis da verdade, aceitemos a luz, venha de onde vier, sem, contudo, lhe dar direito de cidadania antes de a ter analisado em todos os seus elementos e observado nos múltiplos efeitos de sua irradiação. Abramos, pois, as nossas fileiras a todos os investigadores de boa vontade, desejosos de convencer-se, ainda mesmo que a sua rota tenha sido diferente da nossa, até este momento, e contanto que eles aceitem as leis fundamentais de nossa filosofia.
Rejubilemo-nos no momento em que o Espiritismo, fundado em bases inabaláveis, entra em nova fase, para chamar a atenção dessa nova geração, à qual o estudo da Ciência cabe por partilha, quer ela sonde as profundezas desconhecidas do oceano celeste, quer perscrute essas miríades de mundos revelados pelo microscópio, quer, enfim, que ela peça aos fenômenos do magnetismo o segredo que conduz à descoberta das admiráveis leis harmônicas do Criador, das quais uma única encerra todas: a lei de Amor.
Também não repilamos, senhores, esses pioneiros que com tanto desdém são chamados materialistas. – Ficai certos de que alguns desses pesquisadores, satisfazendo à lei comum do erro, sentem sua consciência revoltar-se ao perscrutar a matéria para aí procurar esse princípio vital que só de Deus emana.
Sim, lamentemos seus esforços infrutíferos e abramos-lhes também as nossas fileiras, porque não os poderíamos confundir com os soberbos, enceguecidos pelo erro e pelo sofisma! Oh! para estes sigamos o preceito do filósofo de Nazaré: “Deixai aos mortos o cuidado de enterrar os seus mortos”; ( † ) e passemos.
Mostremo-nos, pois, sempre verdadeiros e sinceros espíritas, por nosso espírito de tolerância, nosso amor por nossos irmãos, com os quais devemos partilhar esse pão da vida com que nos alimentou nosso caro mestre, apanhando essas espigas caídas de feixes incompreendidos!…
Semeemos, propaguemos e semeemos ainda, mesmo nos terrenos ressecados pelo sopro do cepticismo, porque se alguns grãos lançados ao vento da incredulidade vierem germinar em algum sulco escondido e cavado pela dor, seu rendimento será o cêntuplo do trabalho.
Sobretudo não percamos nosso tempo, nem nossas forças, em responder aos ataques de que possamos ser objeto, porque o homem que arroteia deve esperar ser ferido pelos espinhos que arranca.
– Não respondamos mais a esses timoratos do livre-pensamento, que fingem ver no Espiritismo uma religião, um engenho destruidor das coisas estabelecidas, quando, ao contrário, esta doutrina reúne num feixe único todos os membros esparsos da grande família humana, que a intolerância de uns e a imobilidade de outros dispersou e deserdou de toda crença.
Mas, se de um lado, devemos apelar a todos os trabalhadores devotados, se a Ciência pode e nos deve ser de grande valia para explicar o que o vulgo chama milagre, jamais esqueçamos que o objetivo essencial e final de nossa Doutrina consiste no estudo das leis psicológicas e morais, leis que compreendem a fraternidade, a solidariedade entre todos os seres, lei única, lei universal que rege igualmente a ordem moral e a ordem material.
– É esta bandeira, senhores, que manteremos alta e firme, aconteça o que acontecer, e ante a qual deverão inclinar-se todas as outras considerações.
É animado por tais pensamentos que vossa Comissão deve prosseguir a obra do mestre, porque foram eles que o conduziram à descoberta desta magnífica estrela, de brilho muito diferente, de poder bem diverso para a felicidade da Humanidade, do que todas aquelas cujo conjunto deslumbra os nossos olhos.
– Sigamos escrupulosamente o plano da vasta e sábia organização deixada pelo mestre, última expressão de seu gênio, e na qual ele compara, com tanta felicidade, as sociedades espíritas a observatórios, cujos estudos devem ser ligados entre si e religados ao grupo central de Paris, mas deixando a cada um a livre direção de suas observações particulares.
De pé e à obra, pois, espíritas das cinco partes do mundo! À obra também, espiritualistas, biologistas, magnetistas e vós todos, enfim, homens de Ciência, pesquisadores sedentos da verdade, reunidos por este pensamento comum: fora da verdade não há salvação, digno eco desta divisa dos espíritas: fora da caridade não há salvação.
Nestas condições, mas só nestas condições, pelo menos é a nossa profunda convicção, não só o Espiritismo não ficará estacionário, mas crescerá rapidamente, guiado sempre por seu antigo piloto, muito mais poderoso, muito mais clarividente ainda do que o era na Terra, e onde sua digna companheira dele recebeu a missão de secundar seus pontos de vista generosos e benevolentes para o futuro da Doutrina.
Perdão, senhores, por me haver alongado; entretanto, muito teria ainda a vos dizer… mas me apresso, compreendendo vossa impaciência em querer ouvir aquele que será sempre o nosso digno e venerado presidente. Ele está aqui, em meio a uma cerrada falange de Espíritos simpáticos e protetores; mas era dever daquele a quem a vossa escolha confiou a difícil tarefa de presidir aos vossos trabalhos e à direção de vossas sessões, dar-vos a conhecer as suas intenções, partilhadas pela Comissão Central e, assim o espera, pela maioria dos espíritas.
E. Malet.