O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano XII — Fevereiro de 1869.

(Idioma francês)

Um Espírito que julga sonhar.

(Sumário)


1. — Várias vezes têm sido vistos Espíritos que ainda se julgam vivos, porque seu corpo fluídico lhes parece tangível como seu corpo material. Eis um deles, numa posição pouco comum: não se julgando morto, tem consciência de sua intangibilidade; mas, como em vida era profundamente materialista, em crença e em gênero de vida, imagina que sonha, e tudo quanto lhe foi dito não pôde arrancá-lo do erro, tão persuadido está de que tudo acaba com o corpo. Era um homem de muito espírito, escritor distinto, que designaremos pelo nome de Luís. Fazia parte do grupo de notabilidades que, em dezembro último, partiu para o mundo dos Espíritos. Há alguns anos veio à nossa casa, onde testemunhou diversos casos de mediunidade; aí viu principalmente um sonâmbulo, que lhe deu evidentes provas de lucidez, em coisas que lhe eram inteiramente pessoais, mas nem por isto se convenceu da existência de um princípio espiritual.

Numa sessão do grupo do Sr. Desliens, em 22 de dezembro, ele veio espontaneamente comunicar-se por um dos médiuns, o Sr. Leymarie, sem que ninguém tivesse pensado nele. Tinha morrido há oito dias. Eis o que fez escrever:

“Que sonho singular!… sinto-me arrastado por um turbilhão, cuja direção não compreendo… Alguns amigos, que julgava mortos, convidaram-me para um passeio, e eis-nos arrastados. Para onde vamos? Olha!… estranha brincadeira! Para um grupo espírita!… Ah! que farsa engraçada, ver essa boa gente conscienciosamente reunida!… Conheço uma dessas figuras… Onde a vi! Não sei… (Era o Sr. Desliens, que se achava na sessão acima mencionada.) Talvez em casa desse bravo Allan Kardec, que uma vez quis provar-me que eu tinha uma alma, fazendo-me apalpar a imortalidade. Mas, em vão apelaram aos Espíritos, às almas: tudo falhou; como nesses jantares mal preparados, nenhum prato servido prestava. Entretanto, eu não desconfiava da boa-fé do sumo-sacerdote; julgo-o um homem honesto, mas um orgulhoso papalvo da assim chamada erraticidade.

“Eu vos ouvi, senhores e senhoras, e vos apresento meus respeitosos cumprimentos. Escreveis, ao que me parece, e vossas mãos ágeis sem dúvida vão transcrever o pensamento dos invisíveis!… espetáculo inocente!… sonho insensato este meu! Eis um que escreve o que digo a mim mesmo… Mas absolutamente não sois divertidos, nem também meus amigos, que têm semblantes compassivos como os vossos. (Os Espíritos dos que haviam morrido antes dele, e que ele julga ver em sonho.)

“Ah! certamente é uma estranha mania deste valente povo francês! Tiraram-lhe de uma vez a instrução, a fé, o direito, a liberdade de pensar e escrever, e esse bravo povo se atira em devaneios, em sonhos. Dorme acordado este país das Gálias  †  e é maravilhoso vê-lo agir!

“Entretanto, ei-los em busca de um problema insolúvel, condenado pela Ciência, pelos pensadores, pelos trabalhadores!… falta-lhes instrução… A ignorância é a lei de Loiola  †  largamente aplicada… têm diante de si todas as liberdades; podem atingir todos os abusos, destruí-los, enfim tornar-se seu senhor, senhor viril, econômico, sério, legal, etc., e, como crianças pequenas, falta-lhes a religião, um papa, um cura, a primeira comunhão, o batismo, um guia para tudo e para sempre. Faltam chocalhos a essas crianças grandes, e os grupos espíritas ou espiritualistas lhas dão.

“Ah! se realmente houvesse um grão de verdade em vossas elucubrações! mas haveria, para o materialista, matéria para o suicídio!… Olhai! eu vivi largamente; desprezei a carne, revoltei-a; ri dos deveres de família, de amizade. Apaixonado, usei e abusei de todas as volúpias, e isto com a convicção de que obedecia às atrações da matéria, única lei verdadeira em vossa Terra, e isto eu repetirei ao meu despertar, com a mesma fúria, o mesmo ardor, a mesma habilidade. Tomarei a um amigo, a um vizinho, sua mulher, sua filha ou sua pupila, pouco importa, desde que, estando mergulhado nas delícias da matéria, eu renda homenagem a essa divindade, senhora de todas as ações humanas.

“Mas, e se me tivesse enganado?… se tivesse deixado passar a verdade?… se, realmente, houvesse outras vidas anteriores e existências sucessivas após a morte?… se o Espírito fosse uma personalidade viva, eterna, progressiva, rindo da morte, retemperando-se no que chamamos provação?… então haveria um Deus de justiça e de bondade?… eu seria um miserável… e a escola materialista, culpada do crime de lesa-nação, teria tentado decapitar a verdade, a razão!… eu seria, ou antes, nós seríamos profundos celerados, refinados pretensamente liberais!… Oh! então se estivésseis com a verdade, eu daria um tiro nos miolos ao despertar, tão certo quanto me chamo…”


2. — Na sessão da Sociedade de Paris,  †  de 8 de janeiro, o mesmo Espírito vem manifestar-se novamente, não pela escrita, mas pela palavra, servindo-se do corpo do Sr. Morin, em sonambulismo espontâneo. Falou durante uma hora, e foi uma das cenas mais curiosas, porque o médium assumiu a sua pose, os gestos, a voz, a linguagem, a ponto de ser facilmente reconhecido pelos que o tinham visto. A conversa foi recolhida com cuidado e fielmente reproduzida, mas sua extensão não nos permite publicá-la. Aliás, não foi senão o desenvolvimento de sua tese; a todas as objeções e perguntas que lhe foram feitas, pretendeu tudo explicar pelo estado de sonho e, naturalmente, perdeu-se num labirinto de sofismas. Ele próprio lembrou os principais episódios da sessão a que aludira na sua comunicação escrita, e disse:

“Eu bem tinha razão de dizer que tudo havia falhado. Olhai, eis a prova. Eu tinha feito esta pergunta: Há um Deus? Pois bem! todos os vossos pretensos Espíritos responderam afirmativamente. Vedes que estavam ao lado da verdade e não a conhecem mais do que vós.” Uma pergunta, entretanto, o embaraçou muito, por isso procurou constantes subterfúgios para dela se esquivar. Foi esta: “O corpo pelo qual nos falais não é o vosso, porque é magro e o vosso era gordo. Onde está o vosso verdadeiro corpo? Não está aqui, pois não estais em vossa casa. Quando se sonha, está-se em seu leito. Ide, pois, ver em vosso leito se o vosso corpo lá está e dizei-nos como podeis estar aqui sem o vosso corpo?”

Perdendo a paciência por estas reiteradas perguntas, às quais apenas respondia pelas palavras: “Efeitos bizarros dos sonhos”, acabou dizendo: “Bem vejo que queríeis despertar-me. Deixai-me.” Desde então crê sonhar sempre.


3. — Numa outra reunião, um Espírito deu sobre este fenômeno a seguinte comunicação:

Eis aqui uma substituição de pessoa, um disfarce. O Espírito recebe a liberdade ou cai na inação. Digo inação, isto é, a contemplação do que se passa. Está na posição de um homem, que momentaneamente empresta a sua residência e assiste às diversas cenas que aí são representadas com o auxílio de seus móveis. Se preferir gozar da liberdade, ele o pode, a menos que não tenha interesse em ficar como espectador.

Não é raro que um Espírito atue e fale com o corpo de um outro; deveis compreender a possibilidade desse fenômeno, quando sabeis que o Espírito pode retirar-se com o seu perispírito para mais ou menos longe de seu envoltório corporal. Quando o fato acontece sem que nenhum Espírito o aproveite para tomar o lugar, há catalepsia. Quando um Espírito deseja aí entrar para agir e tomar por um instante sua parte na encarnação, une o seu perispírito ao corpo adormecido, desperta-o por esse contato e dá o movimento à máquina. Mas os movimentos, a voz, não são os mesmos, porque os fluidos perispirituais não mais afetam o sistema nervoso da mesma maneira que o verdadeiro ocupante.

Essa ocupação jamais pode ser definitiva; para isto, seria preciso a desagregação absoluta do primeiro perispírito, o que levaria forçosamente à morte. Ela nem mesmo pode ser de longa duração, uma vez que o novo perispírito, não tendo sido unido a esse corpo desde a formação deste, nele não tem raízes; não tendo sido modelado por esse corpo, não é adequado ao funcionamento dos órgãos; o Espírito intruso aí não está numa posição normal; é incomodado em seus movimentos, razão por que deixa essa vestimenta de empréstimo, desde que dela não mais necessite.

Quanto à posição particular do Espírito em questão, não veio voluntariamente ao corpo de que se serviu para falar; a ele foi atraído pelo próprio Espírito de Morin, que quis tirar prazer de seu embaraço; o outro, porque cedeu ao secreto desejo de se mostrar, ainda e sempre, como céptico e zombador, aproveitou a ocasião que lhe era oferecida. O papel um tanto ridículo que representou, por assim dizer malgrado seu, servindo-se de sofismas para explicar sua posição, é uma espécie de humilhação, cujo amargor sentirá ao despertar, e que lhe será proveitoso.


Observação. – O despertar desse Espírito não poderá deixar de provocar observações instrutivas. Como se viu, em vida era um tipo de materialista sensualista; jamais teria aceitado o Espiritismo. Os homens dessa categoria buscam as consolações da vida nos prazeres materiais; não são da escola de Buchner pelo estudo; mas porque esta doutrina liberta do constrangimento imposto pela espiritualidade, ela deve, em sua opinião, estar certa. Para eles, o Espiritismo não é um benefício, mas um constrangimento; não há provas que possam triunfar de sua obstinação; repelem-nas, menos por convicção do que por medo de que sejam verdadeiras.


[Revista de abril.]

4. O DESPERTAR DO SR. LUÍS.


No número precedente publicamos o relato do estado singular de um Espírito que julgava sonhar. Enfim despertou, e o anunciou espontaneamente, na comunicação seguinte:


(Sociedade de Paris, 12 de fevereiro de 1869. – Médium: Sr. Leymarie.)

Decididamente, senhores, malgrado meu, é preciso que eu abra os olhos e os ouvidos; é preciso que escute e veja. Por mais que negue e declare que sois maníacos, muito corajosos, mas muito inclinados aos devaneios, às ilusões, é preciso, confesso, apesar dos meus ditos, que finalmente eu saiba que não sonho mais. Acerca disto, estou certo, completamente certo. Venho à vossa casa todas as sextas-feiras, dias de reunião e, de tanto ouvir repetir, quis saber se esse famoso sonho se prolongaria indefinidamente. O amigo Jobard se encarregou de me edificar a respeito, e isto com provas sólidas.

Não pertenço mais à Terra; estou morto; vi o luto dos meus, o pesar dos amigos, o contentamento de alguns invejosos e agora venho ver-vos. Meu corpo não me seguiu; está mesmo lá, no seu recanto, no meio do esterco humano; e, com ou sem apelo, hoje venho a vós, não mais com despeito, mas com o desejo e a convicção de me esclarecer. Discirno perfeitamente; vejo o que fui; percorro com Jobard distâncias imensas: então vivo; concebo, combino, possuo minha vontade e meu livre-arbítrio: assim, nem tudo morre. Não éramos, pois, uma agregação inteligente de moléculas e todas as salmodias sobre a inteligência da matéria não passavam de frases vazias e sem consistência.

Ah! crede, senhores, se meus olhos se abrem, se entrevejo uma verdade nova, não é sem sofrimentos, sem revoltas, sem retornos amargos!

É, pois, muito verdadeiro! O Espírito permanece! Fluido inteligente, pode, sem a matéria, viver sua vida própria, etérea, segundo a vossa expressão: semimaterial. Por vezes, entretanto, eu me pergunto se o sonho fantástico que eu tinha há mais de um mês não continua com peripécias novas, inauditas; mas o raciocínio frio, impassível de Jobard força-me a mão e, quando resisto, ele ri e se deleita em me confundir; todo contente, cumula-me de epigramas e ditos alegres! Por mais que eu me rebele e me revolte, é preciso obedecer à verdade.

O Desnoyers da Terra, o autor de Jean-Paul Choppard ainda está vivo e seu pensamento ardente abarca outros horizontes. Outrora ele era liberal e terra-a-terra, ao passo que agora aborda e abraça problemas desconhecidos, maravilhosos; e, diante dessas novas apreciações, senhores, tende a bondade de me perdoar as expressões um tanto levianas, porque, se eu não tinha razão completamente, bem poderíeis estar um pouco errados.

Desejo refletir, reconhecer-me definitivamente, e se o resultado de minhas pesquisas sérias me conduzir às vossas ideias, hei de esperar, mas já não será para me dar um tiro nos miolos.

Até outra vez, senhores.

Luís Desnoyers. n


5. — O mesmo Espírito deu espontaneamente a comunicação seguinte, a propósito da morte de Lamartine.


(Sociedade de Paris, 5 de março de 1869. – Médium: Sr. Leymarie.)

Sim, senhores, nós morremos mais ou menos esquecidos; pobres seres, vivemos confiantes nos órgãos que transmitem os nossos pensamentos. Queremos a vida com suas exuberâncias, fazemos uma multidão de projetos. Neste mundo a nossa passagem pode ter tido a sua repercussão e, chegada a última hora, todos esses ruídos, todo esse barulhinho, nossa soberba, nosso egoísmo, nosso labor, tudo é engolido na massa. É uma gota d'água no oceano humano.

Lamartine era um grande e nobre espírito, cavalheiresco, entusiasta, um verdadeiro mestre na acepção da palavra, um diamante puro, bem lapidado; era belo, grande; tinha o olhar, tinha o gesto do predestinado; sabia pensar, escrever; sabia falar; era um inspirado, um transformador!… Poeta, mudou o impulso da literatura, emprestando-lhe suas asas prodigiosas; homem, governou um povo, uma revolução, e suas mãos se retiraram puras do contato com o poder.

Ninguém mais que ele foi amado, estimado, bendito, adorado; e quando vieram os cabelos brancos, quando o desânimo tomou o belo velho, o lutador dos grandes dias, não lhe perdoaram mais um instante de desfalecimento. A própria França estava desfalecida e esbofeteou o poeta, o grande homem; quis menoscabá-lo, esse lutador de duas revoluções, e o esquecimento, repito, parecia enterrar essa grande e magnânima figura! Ele está morto e bem morto, pois o acolhi no além-túmulo, com todos os que o tinham apreciado e estimado, malgrado o ostracismo, do qual a juventude das escolas fazia uma arma contra ele.

Estava transfigurado, sim, senhores, pela dor de ter visto os que o tinham tanto amado recusar-lhe o devotamento que, no entanto, ele nunca soube recusar em outros tempos, enquanto os vencedores lhe estendiam as mãos. O poeta havia se tornado filósofo, e esse pensador amadurecia sua alma dolorida para a grande prova. Via melhor; pressentia tudo, tudo o que esperais, senhores, e tudo o que eu não esperava.

Mais que ele, sou um vencido; vencido pela morte, vencido em vida pela necessidade, esse inimigo inacessível que nos importuna como um corrosivo; e muito mais vencido hoje, porque venho inclinar-me ante a verdade.

Ah! se para a França hoje reluz uma grande verdade; se a França de 89, se a mãe de tantos gênios desaparecidos recomeça a sentir que um de seus mais caros filhos, o bom, o nobre Lamartine desapareceu, hoje sinto que para ele nada está morto; sua lembrança está em toda parte; as ondas sonoras de tantas lembranças comovem o mundo. Ele era imortal entre vós, mas muito mais ainda entre nós, onde está realmente transfigurado. Seu Espírito resplandece, e Deus pode receber o grande desconhecido. De agora em diante Lamartine pode abarcar os mais vastos horizontes e cantar os hinos grandiosos que o seu grande coração havia sonhado. Pode preparar o vosso futuro, meus amigos, e acelerar conosco as etapas humanitárias. Mais que nunca poderá ver desenvolver-se em vós esse ardente amor pela instrução, pelo progresso, pela liberdade e pela associação, que são os elementos do futuro. A França é uma iniciadora; ela sabe o que pode; quererá, ousará, quando sua juba poderosa tiver sacudido o formigueiro que vive a expensas de sua virilidade e de sua grandeza.

Poderei eu, como ele, ganhar minha auréola e tornar-me resplandecente de felicidade, ver-me regenerar por vossa crença, cuja grandeza hoje compreendo? Para vós Deus me marcou como uma ovelha desgarrada; obrigado, senhores. Ao contato dos mortos tão lamentados, sinto-me viver e em breve direi convosco na mesma prece: A morte é a glória; a morte é a vida.


Luís Desnoyers.


Observação. – Uma senhora, membro da Sociedade, que conhecia particularmente o Sr. Lamartine, e tinha assistido aos seus últimos momentos, acabava de dizer que, depois de sua morte, sua fisionomia se havia literalmente transfigurado, que não tinha mais a decrepitude da velhice. É a essa circunstância que o Espírito aludia.



[1] [v. Luís Desnoyers.]


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