O Caminho Escritura do Espiritismo Cristão.
Doutrina espírita - 1ª parte.

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Revista espírita — Ano X — Maio de 1867.

(Idioma francês)

Uma expiação terrestre.

O jovem Francisco.

(Sumário)


1. — As pessoas que leram O Céu e o Inferno sem dúvida se lembram da tocante história de Marcel, o menino do nº 4, referida no capítulo VIII das Expiações terrestres. O fato seguinte apresenta um caso mais ou menos análogo e não menos instrutivo, como aplicação da soberana justiça e como explicação do que muitas vezes parece inexplicável em certas posições da vida.

As pessoas que leram O Céu e o Inferno sem dúvida se lembram da tocante história de Marcel, o menino do nº 4, referida no capítulo VIII das Expiações terrestres. O fato seguinte apresenta um caso mais ou menos análogo e não menos instrutivo, como aplicação da soberana justiça e como explicação do que muitas vezes parece inexplicável em certas posições da vida.

Numa boa e honesta família morreu, em outubro de 1866, um rapazote de doze anos, cuja vida, durante nove anos, tinha sido um sofrimento contínuo, que nem os cuidados afetuosos de que era cercado, nem os socorros da Ciência tinham podido ao menos suavizar. Era acometido de paralisia e hidropisia; seu corpo estava coberto de chagas, invadidas pela gangrena e suas carnes caíam aos pedaços. Muitas vezes, no paroxismo da dor, ele exclamava: “Que fiz eu então, meu Deus, para merecer tanto sofrer? E, contudo, desde que estou no mundo não fiz mal a ninguém!” Instintivamente esse rapazinho compreendia que o sofrimento devia ser uma expiação, mas, ignorando a lei de solidariedade das existências sucessivas, não remontando seu pensamento além da vida presente, não se dava conta da causa que nele pudesse justificar tão cruel castigo.

Uma particularidade digna de nota foi o nascimento de uma irmã, quando ele tinha cerca de três anos. Foi nesta época que se declararam os primeiros sintomas da terrível enfermidade da qual devia sucumbir. Desde esse momento ele sentiu pela recém-vinda uma repulsa tal que não podia suportar sua presença, parecendo que sua vista redobrava seus sofrimentos. Muitas vezes ele se censurava por esse sentimento, que nada justificava, porque a pequena não o partilhava; ao contrário, ela era doce e amável para com ele. Ele dizia à sua mãe: “Por que, então, a vista de minha irmã me é tão penosa? Ela é boa para mim e, mau grado meu, não me posso impedir de detestá-la.” Entretanto, não podia suportar que lhe fizessem o menor mal, nem que a contrariassem; longe de se deleitar com suas penas, afligia-se quando a via chorar. Era evidente que nele dois sentimentos se combatiam; compreendia a injustiça de sua antipatia, mas seus esforços para superá-la eram impotentes.

Que tais enfermidades fossem, em certa idade, consequência de mau procedimento, seria uma coisa muito natural. Mas de que faltas tão graves uma criança desta idade pode tornar-se culpada para suportar semelhante martírio? Além disso, de onde podia provir esta repulsa por um ser inofensivo? Estes são problemas que se apresentam a todo instante, e que levam muita gente a duvidar da justiça de Deus, porque aí não encontram solução em nenhuma religião. Ao contrário, essas aparentes anomalias encontram sua completa justificação na solidariedade das existências. Um observador espírita poderia, então, dizer, com toda aparência de razão, que esses dois seres eram conhecidos e tinham sido colocados ao lado do outro na existência atual para alguma expiação, e para a reparação de alguma falta. Do estado de sofrimento do irmão, podia-se concluir que ele era o culpado, e que os laços de parentesco próximo que o uniam ao objeto de sua antipatia lhe eram impostos para preparar entre eles as vias de uma reconciliação. Assim, já se vê no irmão uma tendência e esforços para superar a sua aversão, que reconhece injusta. Esta antipatia não tinha os caracteres do ciúme que por vezes se nota em crianças do mesmo sangue. Ela provinha, pois, conforme toda a probabilidade, de lembranças dolorosas, e, talvez, do remorso que despertava a presença da menina. Tais as deduções que, racionalmente e por analogia, podem ser tiradas da observação dos fatos, e que foram confirmadas pelo Espírito do rapazote.


2. — Evocado quase imediatamente após a morte, por uma amiga da família, pela qual nutria grande afeição, de início não pôde explicar-se de maneira completa, prometendo, ulteriormente, dar detalhes mais circunstanciados. Entre as diversas comunicações que deu, eis as duas que se referem mais particularmente à questão:

“Esperais de mim o relato que prometi, acerca do que fui numa existência anterior, e a explicação da causa de meus grandes sofrimentos; será um ensinamento para todos. Bem sei que esses ensinamentos estão em toda parte e se encontram por todos os lados; mas o relato de fatos cujas consequências nós mesmos vimos, é sempre, para os que existem, uma prova muito mais admirável.

“Pequei, sim pequei! Sabeis o que é ter sido assassino, ter atentado contra a vida de seu semelhante? Não o fiz pela maneira como os assassinos empregam, matando imediatamente, seja com uma corda, seja com uma faca ou qualquer outro instrumento; não, não foi dessa maneira. Matei, mas matei lentamente, fazendo sofrer um ser que eu detestava! Sim, eu detestava esta criança que julgava não me pertencer! Pobre inocente! Tinha merecido esta triste sorte? Não, meus pobres amigos, não o tinha merecido, ou, pelo menos, não me cabia fazê-la sofrer esses tormentos. E, contudo, eu o fiz, razão por que fui obrigado a sofrer como vistes.

“Eu sofri, meu Deus! Terá sido bastante? Sois tão bom, Senhor! Sim, em presença de meu crime e da expiação, acho que fostes muito misericordioso.

“Orai por mim, caros pais, caros amigos. Agora meus sofrimentos passaram. Pobre Sra. D…, eu vos faço sofrer! é que era muito penoso para mim vir fazer a confissão desse crime imenso!

“Esperança, meus bons amigos, Deus perdoou minha falta; agora estou na alegria e, entretanto, também na pena. Vede! Por mais que se esteja num estado melhor, por mais que se tenha expiado, o pensamento, a lembrança dos crimes deixam tal impressão que é impossível que não se sinta ainda por muito tempo todo o horror, porque não foi somente na Terra que sofri, mas antes, nesta vida espiritual! E quanto sofri para me decidir a vir sofrer esta expiação terrível! Não vos posso narrar tudo isto, porque seria muito horroroso! A visão constante de minha vítima, e a outra, a pobre mãe! Enfim, meus amigos: preces por mim e graças ao Senhor! Eu vos tinha prometido este relato. Era preciso que eu pagasse até o fim a minha dívida, custasse o que custasse.

(Até aqui o médium havia escrito sob o império de viva emoção. Continuou com mais calma).

E agora, meus bons pais, uma palavra de consolação. Obrigado, oh! obrigado! a vós que me ajudastes nesta expiação e que carregastes uma parte; suavizastes, tanto quanto de vós dependia, o que havia de amargo em meu estado. Não vos entristeçais, é coisa passada; estou feliz, eu vo-lo disse, sobretudo comparando o estado passado com o presente. Amo-vos a todos; agradeço-vos; abraço-vos; amai-me sempre. Encontrar-nos-emos e, todos juntos, continuaremos esta vida eterna, esforçando-nos para que a vida futura resgate inteiramente a vida passada.

Vosso filho,

François E.


Numa outra comunicação, o Espírito do jovem François completou as informações acima:

P. – Caro rapaz, não disseste de onde vinha tua antipatia por tua irmãzinha.

Resposta. – Não o adivinhais? Esta pobre e inocente criatura era minha vítima, que Deus tinha ligado à minha última existência como um remorso vivo. Eis por que sua vista me fazia sofrer tanto.

P. – Entretanto, não sabias quem era ela.

Resposta. – Não o sabia em vigília, sem o que meus tormentos teriam sido cem vezes mais horríveis; tão horríveis quanto tinham sido na vida espiritual, em que eu a via incessantemente. Mas credes que meu Espírito, nos momentos em que estava desprendido, não o soubesse? Era a causa de minha repulsa, e se me esforçava por combatê-la, é que instintivamente sentia que era injusta. Eu não era ainda bastante forte para fazer o bem àquela que eu não podia impedir-me de detestar, mas não queria que lhe fizessem mal: era um começo de reparação. Deus me levou em conta este sentimento, permitindo que cedo eu ficasse livre de minha vida de sofrimento, sem o que eu teria podido viver ainda longos anos na horrível situação em que me vistes. Bendizei, pois, minha morte, que pôs um termo à expiação, porque foi a garantia de minha reabilitação.


3. — P. (Ao guia do médium). Por que a expiação e o arrependimento na vida espiritual não bastam para a reabilitação, sem que a isto seja necessário juntar os sofrimentos corporais?

Resposta. – Sofrer num mundo ou no outro é sempre sofrer, e se sofre por tanto tempo até que a reabilitação seja completa. Este menino sofreu muito na Terra. Pois bem! isto nada é em relação com o que suportou no mundo dos Espíritos. Aqui ele tinha, em compensação, os cuidados e a afeição de que era rodeado. Há ainda esta diferença entre o sofrimento corporal e o sofrimento espiritual: o primeiro é quase sempre aceito voluntariamente, como complemento de expiação, ou como prova para adiantar-se mais rapidamente, ao passo que o outro é imposto.

Mas há outros motivos para o sofrimento corporal: inicialmente para que a reparação se faça nas mesmas condições em que o mal foi feito; depois, para servir de exemplo aos encarnados. Vendo seus semelhantes sofrer e sabendo a razão disto, ficam muito mais impressionados do que saber que são infelizes como Espíritos; podem melhor explicar-se a causa de seus próprios sofrimentos; de certo modo a justiça divina se mostra palpável aos seus olhos. Enfim, o sofrimento corporal é uma ocasião para os encarnados exercitarem a caridade, uma prova para seus sentimentos de comiseração e, muitas vezes, um meio de reparar erros anteriores; porque, crede-o bem, quando um infortunado se acha em vosso caminho, não é por efeito do acaso. Para os pais do jovem Francisco, era uma grande prova ter um filho nessa triste posição. Pois bem! eles cumpriram dignamente sua missão, e serão tanto mais recompensados quanto agiram espontaneamente, pelo próprio impulso do coração. Se os Espíritos não sofressem na encarnação, é porque na Terra só haveria Espíritos perfeitos.


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