1. — A Sociedade de Bordeaux, † reconstituída, como dissemos em nosso número precedente, reuniu-se este ano, como no ano passado, num banquete no dia de Pentecostes, banquete simples, digamos logo, como convém em semelhante circunstância, e a pessoas cujo objetivo principal é encontrar uma ocasião para se reunirem e estreitarem os laços de confraternidade; a pesquisa e o luxo aí seriam uma insensatez.
A despeito das ocupações que nos retinham em Paris, † pudemos atender ao amável e insistente convite que nos foi feito para nele tomar parte. O do ano passado, que era o primeiro, não havia reunido mais que trinta convivas; no deste ano havia quatro vezes mais, alguns dos quais vindos de grande distância; Toulouse, † Marmande, † Villeneuve, † Libourne, † Niort, † Blaye † e até Carcassonne, † que fica a oitenta léguas, † aí tinham seus representantes. Todas as classes da sociedade estavam confundidas numa comunhão de sentimentos; aí se encontravam o artífice, o agricultor ao lado do burguês, do negociante, do médico, dos funcionários, dos advogados, dos homens de ciência, etc.
Seria supérfluo acrescentar que tudo se passou como devia ter se passado, entre gente que tem por divisa: “Fora da caridade não há salvação”, ( † ) e que professa a tolerância por todas as opiniões e todas as convicções. Por isso, nas alocuções de circunstância que foram pronunciadas, nem uma palavra foi dita que pudesse ferir a mais sombria susceptibilidade; se os nossos maiores adversários aí se encontrassem, não teriam ouvido uma palavra, nem uma alusão que lhes dissesse respeito.
A autoridade se havia mostrado cheia de benevolência e de cortesia em relação a essa reunião, pelo que lhe devemos agradecer. Ignoramos se estava representada de maneira oculta, mas certamente pôde convencer-se, como sempre, de que as doutrinas professadas pelos espíritas, longe de ser subversivas, são uma garantia de paz e de tranquilidade; que a ordem pública nada tem a temer de gente cujos princípios são os do respeito às leis, e que, em nenhuma circunstância, cedeu às sugestões dos agentes provocadores que buscavam comprometê-la. Sempre foram vistos retirando-se e se abstendo de toda manifestação ostensiva, todas as vezes que temeram que eles fossem tomados como motivo de escândalo.
É fraqueza de sua parte? Não certamente; ao contrário, é a consciência da força de seus princípios que os torna calmos e a certeza, que têm, da inutilidade dos esforços tentados para os abafar; quando se abstêm, não é para se porem em segurança, mas para evitar o que pudesse respingar sobre a doutrina. Sabem que ela não necessita de demonstrações exteriores para triunfar. Veem suas ideias germinando em toda parte, propagando-se com uma força irresistível; por que precisariam fazer barulho? Deixam esse encargo aos seus antagonistas que, por seus clamores, ajudam a propagação. Mesmo as perseguições são o batismo necessário de todas as ideias novas um pouco grandes; em vez de as prejudicar, dão-lhe vigor. Mede-se a sua importância pela obstinação com que a combatem. As ideias que não se aclimatam senão à força de reclamos e de exibições têm apenas uma vitalidade factícia e de curta duração; as que se propagam por si mesmas e pela força das coisas têm vida em si, e são as únicas duráveis. É o caso em que se encontra o Espiritismo.
A festa terminou por uma coleta em benefício dos infelizes, sem distinção de crenças, e com uma precaução cuja sabedoria só merece louvores. Para deixar inteira liberdade, não humilhar ninguém e não estimular a vaidade dos que dariam mais que os outros, as coisas foram dispostas de maneira que ninguém, nem mesmo os coletores, soubessem o que cada um tinha dado. A receita foi de 85 fr. e comissários foram designados imediatamente para fazer o seu emprego.
Malgrado nossa curta estada em Bordeaux, pudemos assistir a duas sessões da Sociedade: uma consagrada ao tratamento dos doentes e outra a estudos filosóficos. Assim pudemos constatar por nós mesmos os bons resultados que sempre são o fruto da perseverança e da boa vontade. Pelo relato que publicamos em nosso número precedente sobre a sociedade bordelesa, pudemos, com conhecimento de causa, acrescentar nossas felicitações pessoais. Mas não se deve esconder que, quanto mais prosperar, tanto mais estará exposta aos ataques de nossos adversários; que ela desconfie, sobretudo, das manobras surdas que contra ela pudessem urdir e dos pomos de discórdia que, sob a aparência de zelo exagerado, poderiam lançar em seu seio.
2. — Sendo limitado o tempo de nossa ausência de Paris, pela obrigação de aí estar de volta em dia fixo, não pudemos, para nosso grande pesar, comparecer aos diversos centros para os quais fomos convidados. Não pudemos parar senão alguns instantes em Tours † e Orléans, † que estavam em nosso caminho. Aí também pudemos constatar o ascendente que adquire a doutrina dia a dia na opinião e seus felizes resultados que, por serem ainda individuais, não deixam de ser menos satisfatórios.
Em Tours a reunião devia contar cerca de cento e cinquenta pessoas, tanto da cidade quanto das cercanias, mas em razão da precipitação com que foi feita a convocação, só dois terços puderam comparecer. Uma circunstância imprevista não tendo permitido aproveitar a sala que havia sido escolhida, nós nos reunimos, em noite magnífica, no jardim de um dos membros da Sociedade. Em Orléans os espíritas são menos numerosos, mas nem por isso deixa de contar com adeptos sinceros e devotados, cujas mãos tivemos o prazer de apertar.
Um fato constante e característico, e que se deve considerar como um
grande progresso, é a diminuição gradual e mais ou menos geral das prevenções
contra as ideias espíritas, mesmo entre os que não as compartilham.
Agora se reconhece a cada um o direito de ser espírita, como o de ser
judeu ou protestante; já é alguma coisa. As localidades como Illiers,
†
no Departamento de Eure-et-Loire, em que se estimulam os garotos para
os perseguir a pedradas, são exceções cada vez mais raras. [v.
Illiers e os
espíritas.]
Um outro sinal de progresso não menos característico é a pouca importância que, por toda parte, mesmo nas classes menos esclarecidas, os adeptos ligam aos fatos de manifestações extraordinárias. Se efeitos desse gênero se produzem espontaneamente, as pessoas os constatam, mas não se comovem, não os procuram e, menos ainda, se empenham em provocá-los. Dão pouca importância ao que apenas satisfaz aos olhos e à curiosidade; o objetivo sério da doutrina, suas consequências morais, os recursos que ela pode oferecer para o alívio do sofrimento, a felicidade de reencontrar os parentes ou amigos que perderam, de com eles conversar, escutar conselhos que vêm dar, constituem o objetivo exclusivo e preferido das reuniões espíritas. Mesmo no campo e entre os artistas, um poderoso médium de efeitos físicos seria menos apreciado que um bom médium escrevente que desse, por comunicações racionais, consolação e esperança. O que se busca na doutrina é, antes de tudo, o que toca o coração. É uma coisa notável a facilidade com que, mesmo as pessoas mais iletradas, n compreendem e assimilam os princípios desta filosofia, pois não é necessário ser sábio para ter coração e raciocínio. Ah! dizem eles, se sempre nos tivessem falado assim, jamais teríamos duvidado de Deus e de sua bondade, mesmo nas maiores misérias!
Sem dúvida crer é alguma coisa, porque já é um pé colocado no bom caminho; mas a crença sem a prática é letra morta. Ora, sentimo-nos felizes em dizer que, em nossa breve excursão, entre numerosos exemplos de efeitos moralizadores da doutrina, encontramos bom número desses espíritas de coração, que poderíamos dizer completos, se fosse dado ao homem ser completo no que quer que fosse, e que podem ser olhados como os tipos da geração futura transformada; há-os de ambos os sexos, de todas as idades e condições, desde a juventude até o limite extremo da idade, que desde esta vida realizam as promessas que nos são feitas para o futuro. São fáceis de reconhecer; há em todo o seu ser um reflexo de franqueza e de sinceridade, que impõe a confiança; desde logo se sente que não há nenhuma segunda intenção dissimulada sob palavras douradas ou cumprimentos hipócritas. Em torno deles, e mesmo na mediocridade, sabem fazer reinar a calma e o contentamento. Nesses interiores abençoados respira-se uma atmosfera serena que se reconcilia com a Humanidade, e se compreende o reino de Deus sobre a Terra. Bem-aventurados os que sabem gozá-lo por antecipação! Em nossas excursões espíritas é menos o número dos crentes que computamos, e o que mais nos satisfaz é o desses adeptos que são a honra da doutrina e, ao mesmo tempo, os seus mais firmes sustentáculos, porque a fazem estimada e respeitada neles.
Vendo o número dos felizes que faz o Espiritismo, esquecemos facilmente as fadigas inseparáveis de nossa tarefa. Eis uma satisfação, um resultado positivo, que a malevolência mais obstinada não nos pode roubar. Poderiam tirar-nos a vida, os bens materiais, mas jamais a felicidade de ter contribuído para trazer a paz a esses corações ulcerados. Para quem quer que sonde os motivos secretos que fazem agir certos homens, há lamaçais que sujam os que o atiram, e não aqueles em que é lançado.
Que todos os que nos deram, nessa última viagem, tão tocantes testemunhos de simpatia, recebam aqui nossos mui sinceros agradecimentos e estejam certos de que serão pagos na mesma moeda.
[1]
ERRATUM — No número de julho de 1867,
à página 197, linha 71: As criaturas mais ilustres compreendem…,
lede: As criaturas mais iletradas… [Revista Espírita de janeiro
de 1868.]