Sabeis, meus amigos, de que lugar é datada minha comunicação? De uma garganta perdida, onde as casas disputaram suas fiadas nas dificuldades acumuladas pela criação. Na vertente de colinas quase a pique, serpenteiam ruas dispostas em andares, ou, melhor, penduradas aos flancos dos rochedos. Pobres moradas, que abrigaram muitas gerações; em cima dos telhados se acham jardins, onde os pássaros cantam sua prece. Quando as primeiras flores anunciam belos dias cheios de ar e de sol, essa música parece sair das camadas aéreas; o habitante dobra e trabalha o ferro, e a usina e seu ruído discordante casam seu ritmo áspero e barulhento à harmonia dos pequenos artistas do bom Deus.
Mas acima dessas casas irregulares, desordenadas, originais, deslocadas, existem altas montanhas de uma verdura sem-par; a cada passo o viandante vê alargar-se o horizonte; os vilarejos, as igrejas parecem sair do abismo, e esse panorama estranho, selvagem, mutável, se perde ao longe, dominado por montanhas coroadas de neve.
Mas eu esquecia: sem dúvida deveis perceber uma fita prateada, clara, caprichosa, transparente como um espelho: é o rio Corrèze. † Ora encaixado entre rochedos, é silencioso e grave; ora se escapa alegre, risonho, através dos prados, dos salgueiros e dos olmeiros, oferecendo sua taça aos lábios de numerosos rebanhos e sua transparência benfeitora às brincadeiras dos banhistas; ele purifica a cidade, que divide graciosamente.
Amo esta terra, com suas velhas moradas, seu campanário gigantesco, sua ribeira, seu barulho, sua coroa de castanheiros; eu a amo porque aí nasci, porque tudo que lembro ao vosso espírito benevolente faz parte das lembranças de minha última encarnação. Parentes amados, amigos sinceros sempre me cercaram de ternos cuidados; ajudaram o meu adiantamento espiritual. Chegado às grandezas, eu lhes devia meus sentimentos fraternos; meus trabalhos os honravam, e quando venho visitar, como Espírito, a cidade de minha infância, não deixo de subir ao Puy-Saint-Clair, a última morada dos cidadãos de Tulle, para saudar os restos terrenos dos Espíritos amados.
Estranha fantasia! O cemitério está a cinquenta pés acima da cidade; em toda a volta o horizonte é infinito. A gente está só entre a Natureza, seus prestígios e Deus, o rei de todas as grandezas, de todas as esperanças. Nossos avós tinham querido aproximar os mortos amados de sua verdadeira morada, para lhes dizer: Espíritos! despendei-vos! o ar ambiente vos chama. Saí resplendentes de vossa prisão, a fim de que o espetáculo encantador desse horizonte imenso vos prepare para as maravilhas, que estais chamados a contemplar. Se tiveram esse pensamento, eu o aprovo, pois a morte não é tão lúgubre quanto a querem pintar. Não é para os espíritas a verdadeira vida, a separação desejada, a bem-vinda do exilado nos grupos da erraticidade, onde ele vem estudar, aprender e preparar-se para novas provas?
Em alguns anos, em vez de gemer, de cobrir-se de negro, esta separação será uma festa para os Espíritos encarnados, quando o morto tiver cumprido seus deveres espíritas em toda a acepção da palavra; mas chorarão, gemerão pelo terrícola egoísta, que jamais praticou a caridade, a fraternidade, todas as virtudes, todos os deveres tão bem enunciados em O Livro dos Espíritos.
Depois de ter falado dos mortos, permiti-me falar dos vivos? Eu me apego muito a todas as esperanças, e meu país, onde há tanto a fazer, bem merece votos sinceros.
O progresso, esse nivelador inflexível, é lento, é verdade, em se implantar nas regiões montanhosas, mas sabe a tempo impregnar-se nos hábitos, nos costumes; afasta uma a uma as oposições para, enfim, deixar entrever clarões novos a esses párias do trabalho, cujo corpo, sempre vergado sobre uma terra ingrata, é tão rude quanto o traçado dos sulcos.
A natureza vigorosa desses bravos habitantes espera a redenção espiritual. Eles não sabem o que seja pensar, julgar sensatamente e utilizar todos os recursos do espírito; só o interesse os domina em toda a sua rudeza e o alimento pesado e comum se presta a essa esterilidade do espírito. Vivendo afastados do ruído da política, das descobertas científicas, são como bois, ignorantes de sua força, prestes a aceitar o jugo e, tangidos pelo aguilhão, vão à missa, ao cabaré, ao vilarejo, não por interesse, mas por hábito, dormindo às prédicas, saltando aos sons desafinados de uma gaita, soltando gritos insensatos e obedecendo brutalmente aos movimentos da carne.
O padre se guarda bem de mudar esses velhos usos e costumes; fala da fé, dos mistérios, da paixão, do diabo sempre, e essa mistura incoerente acha um eco sem harmonia nas cabeças dessa brava gente que faz votos, peregrinações com pés descalços e se entrega aos mais estranhos costumes supersticiosos.
Assim, quando uma criança é doentia, pouco expansiva, sem inteligência, logo a levam a um vilarejo chamado Saint-Pao (dizei Saint-Paul); inicialmente é mergulhada numa água privilegiada, mas que se paga; depois a fazem sentar numa bigorna benta e um ferreiro, armado de um pesado martelo, bate vigorosamente na bigorna. Dizem que a comoção experimentada pelos golpes repetidos cura infalivelmente o paciente. Chama-se a isto forjar à Saint-Pao. As mulheres que sofrem do baço também vão banhar-se nessa água miraculosa e se fazer forjar. Julgai por este exemplo em cem o que é o ensino dos vigários desta região.
Entretanto, tomai esse bruto e falai de interesse; logo o camponês manhoso, prudente como um selvagem, se defende com aprumo e confunde o mais astuto juiz. Fazei um pouco de luz em seu cérebro, ensinai-lhe os primeiros elementos de ciência, e tereis homens verdadeiros, fortes em saúde, espíritos viris e cheios de boa vontade. Que as estradas de ferro cruzem esta região e logo tereis um solo generoso com vinho, frutos deliciosos, grão escolhido, trufa perfumada, castanhas delicadas, a vide ou o cogumelo sem igual, bosques magníficos, minas de carvão inesgotáveis, ferro, cobre, gado de primeira ordem, ar, verdura, paisagens esplêndidas.
E quando tantas esperanças não pedem senão para se espalhar, quando tantas outras regiões estão, como essa, numa prostração mortal, desejamos que, em todos os corações, em todos os recantos perdidos deste mundo, penetre O Livro dos Espíritos. Só a doutrina que ele encerra será capaz de mudar o espírito das populações, arrancando-as à pressão absurda dos que ignoram as grandes leis da erraticidade, e que querem imobilizar a crença humana num Dédalo, onde eles próprios têm tanta dificuldade em se reconhecer. Trabalhemos, pois, todos com ardor nesta renovação desejada, que deve derrubar todas as barreiras e criar o fim prometido à geração que logo nos virá.
Baluze. n
Observação. – O nome de Baluze é conhecido dos nossos leitores pelas excelentes comunicações que muitas vezes ele dita ao seu compatriota e médium de predileção, o Sr. Leymarie. Foi durante uma viagem deste último à sua terra que lhe deu a comunicação acima. Baluze, erudito historiógrafo, nascido em Tulle em 1630, morto em Paris em 1718, publicou grande número de obras apreciadas; foi bibliotecário de Colbert. Sua biografia (Dicionário de Feller) diz “que o mundo das letras lamentaram nele um sábio profundo e seus amigos um homem afável e benfeitor.” Há em Tulle um cais com o seu nome. O Sr. Leymarie, que ignorava a história de Saint-Pao, informou-se e teve a certeza de que essas práticas supersticiosas ainda estão em uso.
[1]
[v. Étienne
Baluze.]