1. — Durante a última doença que tivemos no mês de abril de 1866, estávamos sob o império de uma sonolência e de um arrebatamento quase contínuos; nesses momentos sonhávamos constantemente coisas insignificantes, às quais não prestávamos a mínima atenção. Mas na noite de 24 de abril a visão ofereceu um caráter tão particular que ficamos vivamente impressionados.
Num lugar que nada lembrava à nossa memória e que se parecia com uma rua, havia uma reunião de indivíduos que conversavam; nesse número só alguns nos eram conhecidos em sonho, mas sem que os pudéssemos designar pelo nome. Considerávamos a multidão e procurávamos captar o assunto da conversa quando, de repente, apareceu no canto de uma muralha, uma inscrição em letras pequenas, brilhantes como fogo, e que nos esforçamos por decifrar. Estava assim concebida: “Descobrimos que a borracha enrolada sob a roda faz uma légua em dez minutos, desde que a estrada…” Enquanto procurávamos o fim da frase, a inscrição apagou-se pouco a pouco e nós acordamos. Temendo esquecer estas palavras singulares, apressamo-nos em as transcrever.
Qual podia ser o sentido dessa visão, que nada, absolutamente, em nossos pensamentos e em nossas preocupações podia ter provocado? Não nos ocupando nem de invenções, nem de pesquisas industriais, isto não podia ser um reflexo de nossas ideias. Depois, que podia significar essa borracha que, enrolada sob uma roda, fazia uma légua em dez minutos? Era a revelação de alguma nova propriedade dessa substância? Seria ela chamada a representar um papel na locomoção? Queriam pôr-nos no caminho de uma descoberta? Mas, então, por que se dirigir a nós, e não a homens especiais, em condições de fazer os estudos e as experiências necessárias? Contudo, o sonho era muito característico, muito especial, para ser arrolado entre os sonhos de fantasia; devia ter um objetivo; qual? É o que procurávamos inutilmente.
2. — Durante o dia, tendo tido ocasião de consultar o Dr. Demeure sobre a nossa saúde, aproveitamos para lhe pedir que nos dissesse se o sonho apresentava algo de sério. Eis o que ele respondeu:
“Os numerosos sonhos que vos assediaram nestes últimos dias são o resultado do próprio sofrimento que experimentais. Toda vez que há enfraquecimento do corpo, há tendência para o desprendimento do Espírito; mas quando o corpo sofre, o desprendimento não se opera de maneira regular e normal; o Espírito é incessantemente chamado ao seu posto; daí uma espécie de luta, de conflito entre as necessidades materiais e as tendências espirituais; daí, também, interrupções e misturas que confundem as imagens e as transformam em conjuntos bizarros e desprovidos de sentido. O caráter dos sonhos se liga, mais do que se pensa, à natureza da doença. É um estudo a fazer, e os médicos aí encontrarão muitas vezes diagnósticos preciosos, quando reconhecerem a ação independente do Espírito e o papel importante que representa na economia [no organismo]. Se o estado do corpo reage sobre o Espírito, por seu lado o estado do Espírito influi poderosamente sobre a saúde e, em certos casos, é tão útil agir sobre o Espírito quanto sobre o corpo. Ora, muitas vezes a natureza dos sonhos pode ser um indício do estado do Espírito. Repito que é um estudo a fazer, negligenciado até hoje pela Ciência, que não vê em toda parte senão a ação da matéria e não leva em nenhuma conta o elemento espiritual.
“O sonho que me revelais, do qual guardastes uma lembrança tão nítida, parece-me pertencer a outra categoria. Ele contém um fato notável e digno de atenção; certamente foi motivado, mas presentemente eu não vos poderia dar uma explicação satisfatória; só poderia dar-vos a minha opinião pessoal, de que não estou muito seguro. Tomarei minhas informações em boa fonte, e amanhã vos comunicarei o que tiver aprendido.”
3. — No dia seguinte ele nos deu esta explicação:
“O que vistes no sonho que me encarreguei de vos explicar não é uma dessas imagens fantásticas, provocadas pela doença; é, realmente, uma manifestação, não de Espíritos desencarnados, mas de Espíritos encarnados. Sabeis que no sono podemos nos encontrar com pessoas conhecidas ou desconhecidas, mortas ou vivas. Foi este último caso que se deu naquela circunstância. Os que vistes são encarnados que, de forma isolada e sem se conhecerem, ocupam-se de invenções tendentes a aperfeiçoar os meios de locomoção, anulando, tanto quanto possível, o excesso de despesa causada pelo desgaste dos materiais hoje em uso. Uns pensaram na borracha, outros em outros materiais; mas o que há de particular é que quiseram chamar a vossa atenção, como assunto de estudo psicológico, sobre a reunião, num mesmo local, de Espíritos de diversos homens, perseguindo o mesmo objetivo. A descoberta não tem relação com o Espiritismo; é apenas o conciliábulo dos inventores que vos quiseram mostrar, e a inscrição não tinha outra finalidade senão especificar, aos vossos olhos, o objetivo principal de sua preocupação, pois há alguns que procuram outras aplicações para a borracha. Ficai persuadido de que assim o é muitas vezes, e que quando vários homens descobrem ao mesmo tempo, quer uma nova lei, quer um novo corpo, em diferentes pontos do globo, seus Espíritos estudaram a questão em conjunto, durante o sono e, ao despertar, cada um trabalha por seu lado, tirando proveito do fruto de suas observações.
“Notai bem que aí estão ideias de encarnados, e que nada prejulgam quanto ao mérito da descoberta. Pode ser que de todos esses cérebros em ebulição saia algo de útil, como é possível que só saiam quimeras. Desnecessário dizer que seria inútil interrogar os Espíritos a respeito; sua missão, como dissestes em vossas obras, não é poupar ao homem o trabalho das pesquisas, trazendo-lhe invenções acabadas, que seriam outros tantos estímulos à preguiça e à ignorância. Nesse grande torneio da inteligência humana, cada um aí entra por conta própria e a vitória é do mais hábil, do mais perseverante, do mais corajoso.”
4. — Pergunta. Que pensar das descobertas atribuídas ao acaso? Algumas
não são fruto de nenhuma pesquisa?
Resposta. – Bem sabeis que não existe acaso; as coisas que vos parecem as mais fortuitas têm sua razão de ser, pois se deve contar com as inumeráveis inteligências ocultas que presidem a todas as partes do conjunto. Se for chegado o momento de uma descoberta, seus elementos são divulgados por essas mesmas inteligências; vinte homens, cem homens passarão ao lado sem a notar; um só fixará a atenção. O fato, insignificante para a multidão, para ele é um rastro de luz; encontrá-lo não era tudo, o essencial era saber empregá-lo. Não foi o acaso que o pôs sob os olhos, mas os bons Espíritos que lhe disseram: Olha, observa e aproveita, se queres. Depois ele mesmo, nos momentos de liberdade de seu Espírito, durante o sono do corpo, pôde ser posto no caminho e, ao despertar, instintivamente, dirige-se ao local onde deve encontrar a coisa que, por sua inteligência, está chamado a fazer frutificar.
Não; não há acaso: tudo é inteligente na Natureza.