Aos nos enviar o seu opúsculo A confusão do Império de Satã, n anunciado em nosso último número, o Sr. Salgues teve a gentileza de anexar a carta seguinte, que temos o prazer de publicar com sua autorização. Como nós, cada um apreciará os sentimentos nela expressos.
Angers, † 9 de março de 1865.
Senhor e caro irmão em Deus,
É sob a impressão causada pela leitura das comunicações dos Espíritos da Sra. Foulon e do Dr. Demeure (Revista Espírita – março de 1865), que tenho a honra de vos escrever para exprimir todo o prazer que nelas encontrei e, posso dizer, muito interesse, que de regra é o produto de vossa pena.
Acabo de vos enviar uma pequena brochura, rogando que a aceiteis. Para vós e para todos os meus leitores será uma obra muito modesta; mas um velho de oitenta anos, com a vista arruinada por excesso de trabalho e de estudos e, por isto, não podendo retocar o que escreve, como gostaria, deve contar com a indulgência do público.
Os adversários católicos da pneumatologia alimentam nos fanáticos apostólicos a opinião de que os Espíritos são demônios, de que Satã é uma realidade, prejudicando, assim, o desenvolvimento das boas doutrinas, como resultado das preciosas lições, tão morais e tão consoladoras, desses supostos duendes. É em vão que as pessoas sensatas negam estes últimos, por uma simples rejeição persistente. Convém provar aos demonófobos, com detalhes circunstanciados, que laboram em erro; que o inferno dos cristãos é um mito. Foi o que me levou a escrever este opúsculo, sem a pretensão de ocupar o lugar de um escritor.
Na condição de assinante das publicações espíritas de Bordeaux, † acabo de enviar um exemplar de meu livro a cada um de seus autores. Deveria ser de outro modo convosco, senhor, cujas produções leio sempre com interesse desde a sua aparição? Todavia, pensareis que o faça com timidez, já que fui adversário, não dos espíritas, muito honrados para mim, mas do Espiritismo; não de uma maneira absoluta, mas por arrastamento, devendo, entretanto, repelir na ocasião uma linguagem que me atribuíam por abuso de minha assinatura. Assim, acabei por interditar-me toda crítica, querendo ser amigo de todos. Desejo apenas observar, aproximar, comparar, esperar, aprender e julgar no silêncio do gabinete. Hoje ainda creio que estamos longe de tudo saber, que em Espiritismo, como em espiritualismo, haveria lugar para discutir com os Espíritos certas questões de doutrina, mas hoje me dou por satisfeito. Com paciência chegaremos todos ao mesmo fim, à felicidade absoluta e à vida eterna.
Aliás, creio que por toda parte o Espiritismo faz felizes; é vossa obra gloriosa e eu me aplico a fazer ler o mais possível os escritos que hoje tanto se espalham, para restabelecer a moralidade e os sentimentos religiosos, levados na via mais racional. Os homens sensatos devem, pois, fazer votos comigo para que Deus vos conceda longos dias, em perfeita saúde. Creio que ele também se manifestou a meu respeito por meio de três Espíritos que, sem que neles eu pensasse, e em diferentes lugares, me disseram que eu viveria muito tempo, o que já data de sete ou oito anos. Talvez seja porque sempre fiz propaganda com zelo, sem descanso, desde 1853 que, a despeito da visão, muito sacrificada, tenho força, energia, leveza física e vivacidade juvenil, pois minha idade não é deduzida por meu aspecto.
Quereis, pois, aceitar, senhor e caro irmão, o penhor de minha alta consideração e minhas cordiais saudações.
Salgues.
Uma segunda carta do Sr. Salgues, de 11 de abril de 1865, contém a seguinte passagem:
“Um anúncio de meu opúsculo foi feito por um jornal ao qual eu enviei um exemplar. Tive de censurar o autor por me ter chamado de adversário implacável do Espiritismo. Sob a impressão dos dados há pouco fornecidos a Victor Hennequin † por um mau Espírito, combati de boa-fé a doutrina das encarnações; mas, depois de haver reconhecido grande número de incoerências espiritualistas, do mesmo modo que notei no Espiritismo certos detalhes que não cativavam minha confiança, acabei por me limitar à observação minuciosa, esperando com paciência o dia em que, com uma natureza mais perfeita, eu pudesse reconhecer a verdade a respeito de nosso destino após a vida na matéria. Com relação aos fatos e às comunicações espíritas, basta-me, por hora, ter assegurada uma segunda vida em estado espiritual.”
RESPOSTA.
Meu caro senhor,
Recebi a carta que vos dignastes escrever-me, bem como a brochura que a acompanhava, pelo que peço aceiteis meus sinceros agradecimentos. Ainda não tive tempo de tomar conhecimento da obra, mas não duvido que destes trabalho aos nossos antagonistas. A questão do demônio é o último cavalo de batalha em que se agarram; mas esse cavalo está impossibilitado de locomover-se e a corda dessa tábua de salvação está tão gasta que não tardará a romper-se e deixar o barco à deriva.
Fico satisfeito, senhor, pelos excelentes sentimentos que me testemunhais,
e por encontrar em vós uma moderação e uma imparcialidade que atestam
a elevação do vosso Espírito. Confesso que o contrário é que me surpreenderia,
e é para mim uma grande felicidade ver que eu tinha sido induzido em
erro por falsas aparências. [Vide:
Genealogia espírita: Os Espíritos e o brasão.] Se divergimos em
alguns pontos da doutrina, vejo com verdadeira satisfação que um grande
princípio nos une, este: Fora da caridade não há salvação.
Recebei, caro senhor, as fraternais saudações do vosso muito dedicado,
Allan Kardec.
[1]
[Desarroi
de l’Empire de Satan: Preuves donnees au fanatisme … — Google Books.]