1.
Nota. – O Sr. Leymarie, nosso colega, tendo certo dia levantado
mais cedo que de costume e levado por uma força involuntária, sentiu-se
induzido a escrever e obteve a seguinte dissertação espontânea:
Uma geração de operários amaldiçoou meu nome. Tinham razão? Estavam errados? Ah! o futuro deveria responder.
Eu tinha uma ideia fixa: a de aperfeiçoar e, sobretudo, economizar, suprimindo algumas mãos; como Vaucanson, eu queria simplificar o tear, que tomava a criança em baixa idade para dela fazer um pária singular, pálida, mirrada, débil, ar abobalhado, de linguagem burlesca, e que formava uma população à parte em minha cidade natal.
Meu Espírito vivia em contínua tensão; eu dormia para achar, ao despertar, um novo plano; em vez de imagens e sentimentos, meu pensamento era uma engrenagem, um cilindro, molas, polias, alavancas; em meus sonhos aparecia-me o meu anjo-da-guarda, que punha em movimento todas as minhas inspirações, todas as obras das mãos do homem. Haviam dito com razão: “Os mecânicos são os poetas da matéria.” As mais belas máquinas saíram prontas e acabadas do cérebro de um operário; as noções de mecânica que ele não possui, criou-as de novo; a paciência e a imaginação são os seus únicos recursos. Na verdade é uma inspiração dos bons Espíritos, desprezada pelas academias ou cientistas de profissão; mas não é menos certo que se Arquimedes e Vaucanson são os gênios da mecânica, os Virgílios, se quiserdes, não passam dessa paciência, aliada a uma viva imaginação, que cria todas as descobertas com que se honra a Humanidade; e isto por quem? Por monges, ceramistas, cardadores de lã, pastores, marinheiros, um operário da seda, um ferreiro ignorante.
Humilde operário, eu não era um gênio, mas, como tantos outros, um predestinado, chamado a simplificar um tear que amputava os membros, abreviando a vida de milhares de crianças. Suprimi um suplício físico; servindo à indústria, servi ao gênero humano.
Deve-se admirar a Providência, que se serve do pobre Jacquard para transformar um tear que alimenta milhares, que digo eu? milhões de homens na Terra; e é um inseto, cujo túmulo assalaria, transforma e nutre dois quintos do globo. Deus não é um mecânico maravilhoso? Criou o bicho da seda, esse engenhoso artista, no qual fez encontrar o mais vasto problema de economia política. Que ensinamento para os orgulhosos e os indiferentes!
Questão de máquinas! terrível questão! Cada invenção arranca a ferramenta e o pão de populações inteiras; o inventor é, pois, um inimigo próximo e um benfeitor distante; decuplica o poder da arte e da indústria; multiplica o trabalho no futuro; merece bem da Humanidade, mas, também, não causa um mal no presente? O primeiro inventor da máquina de fiar destruiu o recurso de muita gente. Quem fiava a matéria bruta senão a mãe de família, a pastora, as velhas? Por mínimo que fosse o seu salário, ao menos as vestia, as fazia viver de alguma maneira.
Semelhantes aos inventores de verdades religiosas, políticas ou morais, os inventores de máquinas revolucionam a matéria; precursores do futuro, abrem violentamente seu caminho através dos interesses, espezinhando o passado; assim, esperando uma recompensa longínqua, são amaldiçoados por seus concidadãos.
Pobre Humanidade! És estúpida se te deténs, cruel se avanças. Conforme Deus, não deves ficar estacionária, se não quiseres perpetuar o mal; mas, para fazer o bem, és revolucionária a despeito de tudo.
E é por isto que neste tempo de transição Deus vos diz: Sede espíritas, isto é, profundamente imbuídos de iniciativa moral e desinteressada, isto é, prestes a todos os sacrifícios, a fim de que vossa assistência se realize.
Como o bicho da seda, rastejei penosamente, sustentado pelos bons Espíritos; como ele, constrói o meu casulo, dando tudo o que tinha; como ele, meus contemporâneos me desprezaram; mas, também, como ele, o Espírito renasce das cinzas para viver verdadeiramente e admirar esse mecânico dos mundos, esse Deus de luz e de bondade, que quis mostrar à minha cidade natal esse Espírito de verdade que a vivifica e a consola.
Jacquard n
2. — Depois de lida esta comunicação na Sociedade de Paris, † na sessão de 12 de fevereiro de 1864, evocou-se o Espírito Jacquard, ao qual foram dirigidas as perguntas que se seguem, com as seguintes respostas.
(Sociedade Espírita de Paris, 12 de fevereiro de 1864. – Médium:
Sr. Leymarie.)
Pergunta – Sem dúvida já deveis ter dado comunicações em Lyon; † no entanto, não me lembro de ter visto comunicações vossas. Como foi que viestes dar a dissertação, que acabamos de ler, ao Sr. Leymarie, em Paris, e não em um dos centros espíritas de Lyon? Por que o Sr. Leymarie foi, de certo modo, constrangido a levantar-se bem cedo para escrever a comunicação? Enfim, que pensais do Espiritismo em Lyon?
Resposta – É natural que me tenha comunicado tanto em Paris quanto em minha cidade natal, porque os pais do médium são lioneses e, particularmente, porque conheci o seu avô, que me prestou importante serviço em circunstância excepcional. E depois, o médium me foi designado pelo Espírito de seu avô, que realiza no mundo dos Espíritos uma missão idêntica à minha. E como essa missão me deixa alguns instantes livres, julguei não abusar do sono do médium, cujo devotamento, como o de tantos outros, é dedicado à causa a que serve.
Também desejava que meus compatriotas tivessem notícias minhas pela Revista Espírita. Estando sempre junto a eles, partilhando de suas alegrias e tristezas, não cessando de lhes dizer: “Amai-vos e vos estimai”, eu queria, unindo a minha a outras vozes mais influentes, estimulá-los, nesse momento de desemprego e de dificuldade, a se prepararem contra as eventualidades, contra o inimigo.
Por Lyon podeis compreender o que pode o Espiritismo interpretado com bom-senso. Em que se tornaram as violências do passado, essas recriminações injustas, essas rebeliões que ensanguentaram a colmeia lionesa? E esses cabarés, outrora testemunhas de cenas licenciosas, por que hoje se esvaziam? É que a família retomou seus direitos por toda parte onde penetrou o Espiritismo e se fez sentir a sua influência benéfica; e por toda parte os operários espíritas retornaram à esperança, à ordem, ao trabalho inteligente, ao desejo de bem fazer, à vontade de progredir.
Em meu tempo foi a minha invenção que, não mais tornando o tecelão escravo da máquina, pôde regenerar todo um mundo de trabalhadores; e, por sua vez, é o Espiritismo que transforma o espírito dessa população, dando-lhe a verdadeira iniciação à vida; é toda uma legião de bons Espíritos que vêm abrir os olhos à inteligência e ao amor corações até então pervertidos.
Hoje o Espiritismo entra em nova fase, pois é tempo das aspirações generosas. A burguesia, ainda submetida ao alto clero, fica como espectadora do combate pacífico que a ideia nova oferece ao non possumus do passado. E todos esperam o fim da batalha, a fim de se colocarem ao lado dos vencedores.
Assim, caros compatriotas, escutai e segui os conselhos de Allan Kardec: são os de vossos Espíritos protetores. É por eles que afastareis o perigo das colisões e, mesmo, das coalizões. Quanto mais humildes e sérios, tanto mais fortes sereis. Os arrogantes arriarão a bandeira diante da verdade que os ofuscará; é então que se dará a transformação espiritual dessa grande cidade, que todos amamos e que quer bem particularmente à Sociedade Espírita de Paris, por sua fé no futuro e as boas esperanças que soube realizar.
Jacquard.
3. — Na mesma sessão, enquanto Jacquard escrevia a comunicação que acabamos de ler, outro médium, o Sr. d’Ambel obtinha outra sobre o mesmo assunto, assinada pelo Espírito Vaucanson.
OBJETIVO FINAL DO HOMEM NA TERRA.
Outrora os homens eram atrelados à charrua e sacrificados em trabalhos gigantescos. A construção das muralhas da Babilônia, † onde vários carros marchavam lado a lado, a edificação das Pirâmides † e a instalação da Esfinge † custaram mais de dez batalhas sangrentas. Mais tarde os animais foram subjugados juntamente com os homens e vimos, na jovem Lutécia, † bois atrelados arrastarem o carro onde se refestelavam os reis indolentes da segunda raça.
Este preâmbulo tem por objetivo mostrar aos que nos ouvem, que todas as perguntas feitas neste simpático centro aos Espíritos têm sua solução, por um ou outro de nós. Esse caro Jacquard, essa glória do tear, esse artesão engenhoso que caiu como um valente soldado no campo de honra do trabalho, tratou um lado das questões econômicas que se ligam ao labor humanitário. Ele me pôs um pouco em causa; falando das modificações que eu tinha feito na arte do tecelão, chamou-me, a bem dizer, para fazer a minha parte nesse concerto espiritual. Eis por que, encontrando entre vós um médium, como eu nascido na velha cidade dos Allobroges, † esta rainha do Grésivaudan, † dele me apodero com a permissão de seus guias habituais e venho completar por uma parte a exposição que meu ilustre amigo de Lyon † vos deu por outro médium.
Em sua dissertação, aliás muito notável, ainda exprime certas queixas que, sob o inventor, descobrem o operário cioso de seu ganha-pão e temeroso do desemprego homicida; sente-se que o pai de família se apavora com a suspensão do trabalho, do qual depende a vida dos seus; adivinha-se o cidadão que freme ante o desastre que pode atingir a maioria de seus compatriotas. Na verdade esse sentimento é dos mais honrosos, mas denota um ponto de vista de certa estreiteza. Venho tratar da mesma questão que Jacquard, se não mais largamente que ele, ao menos de um ponto de vista mais geral. Contudo, devo constatar, para homenagear a quem de direito, que a generosa conclusão da comunicação de meu amigo resgata amplamente o lado defeituoso que assinalo.
O homem não foi feito para ficar como instrumento ininteligente de produções; por suas aptidões e seu lugar na Criação, por seu destino, é chamado a outra função, além da máquina, a um outro papel, que não o do cavalo de carrossel; deve, nos limites fixados por seu adiantamento, chegar a produzir cada vez mais intelectualmente e, enfim, emancipar-se desse estado de servilismo e de engrenagem sem inteligência, a que, durante tantas gerações, ficou escravizado. O operário é chamado a tornar-se engenheiro, a ver seus braços laboriosos substituídos por máquinas mais ativas, mais infatigáveis e mais precisas; o artesão deve tornar-se artista e conduzir o trabalho mecânico por um esforço do seu pensamento, e não mais por um esforço braçal. Aí está a prova irrecusável desta lei tão vasta do progresso, que rege todas as humanidades.
Agora que vos é permitido entrever, por uma escapadela na vida futura, a verdade dos destinos humanos; agora que estais convencidos de que esta existência não passa de um dos elos de vossa vida imortal, podeis exclamar: Que importa que cem mil indivíduos sucumbam, quando uma máquina foi descoberta para fazer o trabalho desses cem mil? Para o filósofo, que se eleva acima dos preconceitos e interesses terrenos, o fato prova, com muita singeleza, que o homem não estava mais em seu caminho, quando se consagrava a esse labor condenado pela Providência. Com efeito, é no âmbito de sua inteligência que o homem, doravante, deve fazer passar a grade e a charrua que fecundam; é unicamente por sua inteligência que poderá e deverá chegar ao melhor.
Rogo que não deis às minhas palavras um sentido por demais revolucionário; não! Mas deixai-lhes o sentido largo e superior, que comporta um ensinamento espírita, que se dirige a inteligências já avançadas e prontas a compreender todo o alcance de nossas instruções. Está provado que, se de hoje para amanhã, o artesão abandonasse o tear que o faz viver, sob pretexto de que, num dado momento, este seria substituído por um mecanismo ou qualquer outro invento, por certo seguiria uma via fatal e contrária a todas as lições dadas pelo Espiritismo.
Mas todas as nossas reflexões não têm senão um objetivo: demonstrar que ninguém deve gritar contra um progresso que substitui braços humanos por molas e engrenagens mecânicas. Além disso, é bom acrescentar que a Humanidade pagou largo preço à miséria e que, penetrando cada vez mais em todas as camadas sociais, a instrução tornará cada indivíduo mais e mais apto para funções inteligentemente chamadas liberais.
É difícil a um Espírito, que se comunica pela primeira vez a um médium, exprimir seu pensamento com muita clareza. Assim, relevareis o desconcerto de minha comunicação, cuja conclusão aqui está em duas palavras: O homem é um agente espiritual que deve chegar, num tempo não muito distante, a submeter ao seu serviço e para todas as operações materiais a própria matéria, dando-lhe por único motor a inteligência, que desabrocha nos cérebros humanos.
Vaucanson. n
[1]
[v. Jacquard.]
[2] [v.
Vaucanson.]