1. — Por vezes pergunta-se se Deus não teria podido criar os Espíritos perfeitos, para lhes poupar o mal e todas as suas consequências.
Sem dúvida Deus o teria podido, já que é Todo-Poderoso; e se não o fez é que, em sua soberana sabedoria, julgou mais útil fosse de outro modo. Não compete ao homem perscrutar seus desígnios e, ainda menos, julgar e condenar suas obras. Desde que não pode admitir Deus sem o infinito das perfeições, sem a soberana bondade e a soberana justiça; desde que tem sob os olhos, incessantemente, milhares de provas de sua solicitude pelas criaturas, deve pensar que tal solicitude não poderia ter falhado na criação dos Espíritos. Na Terra o homem é como a criança, cuja visão limitada não vai além do estreito círculo do presente, e não pode julgar da utilidade de certas coisas. Deve, pois, inclinar-se ante o que ainda está acima de seu alcance. Todavia, tendo-lhe Deus dado a inteligência para se guiar, não lhe é vedado procurar compreender, detendo-se humildemente no limite que não pode transpor. Sobre todas as coisas mantidas no segredo de Deus, o homem não pode estabelecer senão sistemas mais ou menos prováveis. Para julgar qual desses sistemas mais se aproxima da verdade, há um critério seguro: os atributos essenciais da Divindade. Toda teoria, toda doutrina filosófica ou religiosa que tendesse a destruir a mínima parte de um só desses atributos pecaria pela base e estaria, por isto mesmo, eivada de erro. De onde se segue que o sistema mais verdadeiro será aquele que melhor conciliar-se com esses atributos.
Sendo Deus todo sabedoria e todo bondade, não poderia ter criado o mal para contrabalançar o bem; se do mal tivesse feito uma lei necessária, teria voluntariamente enfraquecido o poder do bem, porquanto aquilo que é mau não pode senão alterar e enfraquecer o que é bom. Ele estabeleceu leis que são inteiramente justas e boas; o homem seria perfeitamente feliz se as observasse escrupulosamente; mas a menor infração a essas leis causa uma perturbação cujo contragolpe experimenta; daí todas as suas vicissitudes. É, pois, ele próprio, a causa do mal por sua desobediência às leis de Deus. Deus o criou livre de escolher seu caminho; o que tomou o mau caminho o fez por vontade própria e não pode acusar senão a si mesmo pelas consequências para si decorrentes. Pela destinação da Terra, só vemos Espíritos desta categoria, e é o que fez crer na necessidade do mal. Se pudéssemos abarcar o conjunto dos mundos, veríamos que os Espíritos que permaneceram no bom caminho percorrem as diversas fases de sua existência em condições completamente diferentes e que, desde que o mal não é geral, não poderia ser indispensável. Mas resta sempre a questão de saber por que Deus não criou os Espíritos perfeitos. Esta questão é análoga a esta outra: Por que a criança não nasce totalmente desenvolvida, com todas as aptidões, toda a experiência e todos os conhecimentos da idade viril?
2. — Há uma lei geral que rege todos os seres da Criação, animados e inanimados: a lei do progresso. Os Espíritos são a ela submetidos pela força das coisas, sem o que a exceção teria perturbado a harmonia geral e Deus quis dar-nos um exemplo sintetizado na progressão da infância. Desde que o mal não existe como necessidade na ordem das coisas, pois não é devido senão a Espíritos prevaricadores, a lei do progresso de modo algum os obriga a passar por esta fieira para chegar ao bem; ela só os obriga a passar pelo estado de inferioridade intelectual ou, por outras palavras, pela infância espiritual. Criados simples e ignorantes e, por isto mesmo imperfeitos, ou melhor, incompletos, devem adquirir por si mesmos e por sua própria atividade a ciência e a experiência que de início não podem ter. Se Deus os tivesse criado perfeitos, deveria tê-los dotado, desde o instante de sua criação, com a universalidade dos conhecimentos; tê-los-ia isentado de todo trabalho intelectual; mas, ao mesmo tempo, lhes teria tirado a atividade que devem desenvolver para adquirir, e pela qual concorrem, como encarnados e desencarnados, ao aperfeiçoamento material dos mundos, trabalho que não incumbe mais aos Espíritos superiores, encarregados somente de dirigir o aperfeiçoamento moral. Por sua própria inferioridade, tornam-se uma engrenagem essencial à obra geral da Criação. Por outro lado, se os tivesse criado infalíveis, isto é, isentos da possibilidade de fazer o mal, eles fatalmente teriam sido impelidos ao bem, como mecânicos bem preparados que fizessem automaticamente obras de precisão. Mas, então, não mais livre-arbítrio e, por conseguinte, não mais independência; assemelhar-se-iam a esses homens que nascem com a fortuna feita e se julgam dispensados de nada fazer. Submetendo-os à lei do progresso facultativo, quis Deus que tivessem o mérito de suas obras, a fim de terem direito à recompensa e desfrutarem a satisfação de haver conquistado suas próprias posições.
Sem a lei universal do progresso, aplicada a todos os seres, outra teria sido a ordem de coisas a estabelecer. Sem dúvida, Deus tinha a possibilidade. Por que não o fez? Teria feito melhor se tivesse agido de outro modo? Nesta hipótese, ter-se-ia enganado! Ora, se Deus pôde enganar-se, é que não é perfeito; se não é perfeito, não é Deus. Desde que não se o pode conceber sem a perfeição infinita, deve-se concluir que o que fez é o melhor; se ainda não estamos aptos a compreender os seus motivos, por certo o poderemos mais tarde, num estado mais adiantado. Enquanto isto, se não podemos sondar as causas, podemos observar os efeitos e reconhecer que tudo no Universo é regido por leis harmônicas, cuja sabedoria e admirável previdência confundem o nosso entendimento. Muito presunçoso, pois, seria aquele que pretendesse que Deus deveria ter regulado o mundo de outra maneira, pois isto significaria que, em seu lugar, teria feito melhor. Tais são os Espíritos, cujo orgulho e ingratidão Deus castiga, relegando-os a mundos inferiores, de onde só sairão quando, baixando a cabeça sob a mão que os fere, reconhecerem o seu poder. Deus não lhes impõe esse reconhecimento; quer que seja voluntário e fruto de suas observações, razão por que os deixa livres e espera que, vencidos pelo próprio mal que a si atraem, se voltem para Ele.
3. — A isto respondem: “Compreende-se que Deus não tenha criado os Espíritos perfeitos; mas, se julgou conveniente submetê-los todos à lei do progresso, não teria podido, pelo menos, criá-los felizes, sem os sujeitar a todas as misérias da vida? A rigor, compreende-se o sofrimento para o homem, em vista de suas faltas; mas os animais também sofrem; entredevoram-se; os grandes comem os pequenos. Há alguns cuja vida não passa de longo martírio; como nós, têm o livre-arbítrio ou agiram de modo a receber o castigo divino?”
Tal, ainda, a objeção que por vezes fazem e à qual os argumentos acima podem servir de resposta. A despeito disto, juntaremos algumas considerações.
Sobre o primeiro ponto diremos que a felicidade completa é o resultado da perfeição. Já que as vicissitudes originam-se da imperfeição, criar Espíritos perfeitamente felizes fora criá-los perfeitos.
A questão dos animais exige alguns desenvolvimentos. [v.
Destruição dos seres vivos uns pelos outros.] É incontestável que
eles têm um princípio inteligente. De que natureza é este princípio?
Que relações tem com o do homem? É estacionário em cada espécie, ou
progressivo ao passar de uma espécie a outra? Qual o seu limite de progresso?
Marcha paralelamente com o homem, ou é o mesmo princípio que se elabora
e ensaia a vida nas espécies inferiores para, mais tarde, receber novas
faculdades e sofrer a transformação humana? São outras tantas questões
até hoje insolúveis; e se o véu que cobre esse mistério ainda não foi
levantado pelos Espíritos, é porque seria prematuro: o homem ainda não
está maduro para receber toda a luz. É certo que vários Espíritos deram
teorias a respeito, mas nenhuma tem um caráter bastante autêntico para
ser aceita como verdade definitiva; assim, até nova ordem, não se pode
considerá-las senão como sistemas individuais. Só a concordância pode
dar-lhes a consagração, pois aí está o único e verdadeiro controle do
ensino dos Espíritos. Eis por que estamos longe de aceitar como verdades
irrecusáveis tudo quanto ensinam individualmente; um princípio, seja
qual for, para nós só adquire autenticidade pela universalidade do ensinamento,
isto é, por instruções idênticas, dadas em todos os lugares, por médiuns
estranhos entre si e que não sofram as mesmas influências, notoriamente
isentos de obsessões e assistidos por Espíritos bons e esclarecidos.
Por Espíritos esclarecidos deve entender-se os que provam sua superioridade
pela elevação do pensamento e pelo alto alcance de seus ensinos, jamais
entrando em contradição e não dizendo nada que a lógica mais rigorosa
não possa admitir. É assim que foram controladas as diversas partes
da doutrina formulada em O Livro dos Espíritos e em O Livro
dos Médiuns. Tal não é ainda o caso da questão dos animais, razão
por que não tomamos uma decisão. Até constatação mais séria, não se
devem aceitar teorias que possam ser dadas a respeito, senão com muita
reserva, e esperar sua confirmação ou sua negação. [Vide:
Escala dos seres orgânicos em A Gênese.]
Em geral, nunca haveria excesso de prudência em relação a teorias novas, sobre as quais poderíamos ter ilusões. Assim, quantas vimos, desde a origem do Espiritismo que, entregues prematuramente à publicidade, só tiveram uma existência efêmera! Assim será com todas as que apenas tiverem caráter individual e não houverem passado pelo controle da concordância. Em nossa posição, recebendo comunicações de perto de mil centros espíritas sérios, disseminados em diversos pontos do globo, estamos em condições de ver os princípios sobre os quais houve concordância. Foi esta observação que nos guiou até hoje e nos guiará igualmente nos novos campos que o Espiritismo é chamado a explorar. É assim que, desde algum tempo, notamos nas comunicações, vindas de vários lados, tanto da França quanto do estrangeiro, uma tendência para entrarem numa via nova, por meio de revelações de uma natureza toda especial. Essas revelações, dadas muitas vezes em palavras veladas, passaram despercebidas por muitos dos que as obtiveram; muitos outros se acreditaram os únicos a recebê-las; tomadas isoladamente, para nós não teriam valor, mas a sua coincidência lhes dá alto prestígio, devendo ser julgadas mais tarde, quando chegar o momento de serem entregues à luz da publicidade.
Sem essa concordância, quem poderia estar seguro de ter a verdade? A razão,
a lógica, o raciocínio, sem dúvida são os primeiros meios de controle
que devem ser usados; em muitos casos isto basta. Mas quando se trata
de um princípio importante, da emissão de uma ideia nova, haveria presunção
em crer-se infalível na apreciação das coisas. É, aliás, um dos caracteres
distintivos da revelação nova o ser feita em toda parte e ao mesmo tempo;
assim ocorreu com as diversas partes da doutrina. Aí está a experiência
para provar que todas as teorias audaciosas, dadas por Espíritos sistemáticos
e pseudo-sábios, sempre foram isoladas e localizadas; nenhuma se tornou
geral nem pôde suportar o controle da concordância; várias, até, caíram
no ridículo, prova evidente de que não estavam com a verdade. O controle
universal é uma garantia para a futura unidade da doutrina. [Vide artigo:
Autoridade
da Doutrina Espírita — Controle universal do ensino dos Espíritos.]
Esta digressão afastou-nos um pouco do assunto, mas era útil para dar a conhecer de que maneira procedemos, no que respeita a teorias novas concernentes ao Espiritismo, que está longe de haver dado a última palavra sobre todas as coisas. Não as emitimos senão depois de terem recebido a sanção de que acabamos de falar, razão por que algumas pessoas, um tanto impacientes, surpreendem-se com o nosso silêncio em certos casos. Como sabemos que cada coisa virá a seu tempo, não cedemos a nenhuma pressão, venha de onde vier, pois conhecemos a sorte dos que querem ir muito depressa e têm em si mesmos e em suas próprias luzes uma excessiva confiança; não queremos colher um fruto antes que amadureça, mas — tenham certeza — quando estiver maduro, não o deixaremos cair.
Estabelecido este ponto, pouco nos resta dizer sobre a questão proposta, pois o ponto capital ainda não pôde ser resolvido.
4. — Está provado que os animais sofrem. Mas é racional imputar esses sofrimentos à imprevidência do Criador ou a uma falta de bondade de sua parte porque a causa escapa à nossa inteligência, como a utilidade dos deveres e da disciplina escapa ao escolar? Ao lado desse mal aparente não se vê brilhar a sua solicitude pelas mais ínfimas criaturas? Não são os animais providos de meios de conservação apropriados ao ambiente em que devem viver? Não se vê sua pelagem desenvolver-se mais ou menos, conforme o clima? Seus órgãos de nutrição, suas armas ofensivas e defensivas proporcionadas aos obstáculos a vencer e aos inimigos a combater? Em presença de fatos tão multiplicados, cujas consequências só escapam ao olho do materialista, há fundamento em dizer que não existe Providência para eles? Não, certamente, embora nossa visão seja muito limitada para julgar a lei do conjunto. Nosso ponto de vista, restrito ao pequeno círculo que nos rodeia, só nos deixa ver irregularidades aparentes; mas, quando nos elevarmos, pelo pensamento, acima do horizonte terreno, tais irregularidades se apagarão diante da harmonia geral.
O que mais choca nesta observação localizada é a destruição de uns seres pelos outros. Já que Deus prova a sua sabedoria e a sua bondade em tudo o que podemos compreender, forçoso é admitir que a mesma sabedoria presida ao que não compreendemos. Aliás, só exageramos a importância dessa destruição porque sempre a ligamos à matéria, consequência do estreito ponto de vista em que se coloca o homem. Em definitivo, só se destrói o envoltório; o princípio inteligente não é aniquilado; e o Espírito é tão indiferente à perda de seu corpo, quanto o homem à de sua roupa. Esta destruição dos invólucros temporários é necessária à formação e manutenção de novos envoltórios, que se constituem com os mesmos elementos, sem que o princípio inteligente seja atingido, quer nos animais, quer no homem.
Resta o sofrimento, que por vezes leva à destruição desse envoltório. O Espiritismo nos ensina e prova que o sofrimento no homem é útil ao seu avanço moral. Quem nos diz que o dos animais também não tenha utilidade? que não seja, na sua esfera e conforme certa ordem de coisas, uma causa de progresso? É verdade que isto não passa de hipótese, mas ao menos se apoia nos atributos de Deus: a justiça e a bondade, enquanto as outras são a sua negação.
5. — Tendo a questão da criação dos seres perfeitos sido debatida em sessão da Sociedade Espírita de Paris, † o Espírito Erasto ditou, a respeito, a seguinte comunicação:
SOBRE A NÃO-PERFEIÇÃO DOS SERES CRIADOS.
(Sociedade Espírita de Paris, 5 de fevereiro de 1864. – Médium: Sr.
d’Ambel.)
Por que Deus não criou perfeitos todos os seres? Em virtude mesmo da lei do progresso. É fácil compreender a economia [organização] desta lei. Aquele que marcha está no movimento, isto é, na lei da atividade humana; aquele que não progride, que por essência se acha estacionário, incontestavelmente não pertence à gradação ou à hierarquia humanitária. Explico-me, e me compreendereis facilmente. O homem que nasce numa posição mais ou menos elevada, acha em sua situação nativa um dado estado de ser. Pois bem! ele está certo de que se sua vida inteira se passasse nessa condição de ser, sem que lhe tivesse trazido modificações por sua ação ou pela de outrem, declararia que sua existência é monótona, enfadonha, fatigante, numa palavra, insuportável. Acrescento que ele teria perfeita razão, considerando-se que o bem só é bem relativamente ao que lhe é inferior. Isto é tão certo que se puserdes o homem num paraíso terrestre, num paraíso onde não se progrida mais, em dado tempo ele achará sua existência insustentável e aquela morada um impiedoso inferno. Daí resulta, de maneira absoluta, que a lei imutável dos mundos é o progresso ou o movimento para frente, isto é, todo Espírito que é criado está inevitavelmente submetido a essa grande e sublime lei da vida; consequentemente, tal é a própria lei humana.
Só existe um ser perfeito e não pode existir senão um: Deus! Ora, pedir ao Ser Supremo a criação de Espíritos perfeitos, seria pedir-lhe que criasse algo semelhante e igual a Ele. Formular semelhante proposição não será condená-la previamente? Ó homens! por que perguntar sempre a razão de ser de certas questões insolúveis ou acima do entendimento humano? Lembrai-vos sempre de que só Deus pode ficar e viver na sua imobilidade gigantesca. Ele é o suprasumo de todas as coisas, o alfa e o ômega de toda a vida. Ah! crede, meus filhos, jamais busqueis erguer o véu que cobre esse grandioso mistério, que os maiores Espíritos da Criação não abordam sem estremecer. Quanto a mim, humilde pioneiro da iniciação, tudo quanto vos posso afirmar é que a imobilidade é um dos atributos de Deus, ou do Criador, e que o homem e tudo que é criado têm, como atributo, a mobilidade. Compreendei, se puderdes compreender, ou então esperai que chegue a hora de uma explicação mais inteligível, isto é, mais ao alcance do vosso entendimento.
Não trato senão desta parte da questão, pois apenas quis provar que não tinha
ficado estranho à vossa discussão. Sobre todo o resto, reporto-me ao
que foi dito, já que todos me pareceram da mesma opinião. Daqui a pouco
falarei de outros casos que foram assinalados (os casos de Poitiers).
†
[v. Manifestações
de Poitiers.]
Erasto. n
[1]
[v. Thomas
Erasto.]