1. — Domingo, 1º de fevereiro, foram realizadas em Lyon as exéquias do Sr. Guillaume Renaud, antigo oficial, condecorado com a medalha de Santa Helena † e um dos mais antigos e fervorosos espíritas daquela cidade, muito conhecido entre seus irmãos em crença. Embora sobre alguns pontos de forma, que combatemos, aliás pouco importantes e que não atingem a doutrina, professasse ideias particulares que não eram partilhadas por todos, não deixava de ser menos amado e estimado pela bondade de seu caráter e por suas eminentes qualidades morais; e nós mesmos, caso estivéssemos em Lyon naquela ocasião, teríamos tido prazer em lançar algumas flores sobre o seu túmulo. Que ele receba aqui, bem como sua família e amigos particulares, o testemunho de nossa afetuosa lembrança.
Homem simples e modesto, o Sr. Renaud quase não era conhecido fora de Lyon. † Entretanto, sua morte repercutiu até num vilarejo da Haute-Saône, † onde foi contada no púlpito, domingo, 8 de fevereiro, do seguinte modo:
O vigário da paróquia, entretendo os paroquianos com os horrores do Espiritismo, acrescentou que “o chefe dos espíritas de Lyon havia morrido há três ou quatro dias; que tinha recusado os sacramentos; que ao seu enterro não havia comparecido mais que dois ou três espíritas, sem parentes nem sacerdotes; que se o chefe dos espíritas (fazendo alusão ao Sr. Allan Kardec) morresse, ele o lamentaria, se fizesse como o de Lyon. Depois concluiu, dizendo nada negar dessa doutrina, nada afirmar, a não ser que era o demônio que agia contra a vontade de Deus.”
Se quiséssemos refutar todas as falsidades que atribuem ao Espiritismo, na tentativa de desmascarar o seu objetivo e o seu caráter, encheríamos nossa Revista. Como isto pouco nos inquieta, deixemos que falem, limitando-nos a recolher as notas que nos enviam, para utilizá-las posteriormente – se houver oportunidade -na história do Espiritismo. Nas circunstâncias que acabamos de falar, trata-se de um fato material, sobre o qual o Sr. vigário sem dúvida foi mal informado, pois não queremos supor que conscientemente tenha ele querido induzir em erro. Por certo procederia melhor se tivesse agido com menos ardor e esperasse informes mais exatos.
Acrescentaremos que, há pouco tempo, a propósito da morte de um de seus habitantes, fizeram espalhar naquela comuna o boato, por certo de muito mau gosto, que a Sociedade dos Irmãos Batedores, composta de sete ou oito indivíduos da comuna, queria ressuscitar os mortos, pondo-lhes na fronte emplastros, feitos com uma pomada preparada pela Sociedade Espírita de Paris; que essa sociedade de irmãos batedores ia visitar todas as noites o cemitério para dar nova vida aos mortos. As mulheres e a gente moça do bairro ficaram apavoradas a ponto de não mais ousarem sair de casa, com medo de encontrar defuntos.
Lamentavelmente, mais não era preciso para impressionar algum cérebro fraco ou doentio e, se acontecesse um acidente, logo se cuidaria de o debitar à conta do Espiritismo.
Voltemos ao Sr. Renaud. Durante sua doença, inúteis esforços foram tentados para que ele fizesse uma autêntica abjuração de suas crenças espíritas. Apesar disso, um venerável sacerdote o confessou e lhe deu a absolvição. É verdade que depois disto quiseram retirar o certificado de confissão e a absolvição foi declarada nula pelo clero de Saint Jean, como tendo sido dada precipitadamente. É um caso de consciência que não nos incumbiremos de resolver. Daí esta reflexão muito justa, feita em público, que aquele que recebe a absolvição antes de morrer não pode saber se é válida ou não, pois com a melhor intenção pode um padre dá-la de maneira precipitada. O clero, pois, se recusou obstinadamente a receber o corpo na igreja, porque o Sr. Renaud não quis retratar-se de nenhuma das convicções que lhe haviam dado tantas consolações e feito suportar com resignação as provas da vida.
Por um sentimento de conveniência, que apreciarão, e em razão das pessoas que seríamos forçados a designar, passamos em silêncio as lamentáveis manobras que foram tentadas, as mentiras que foram inventadas para provocar desordem nesta circunstância. Apenas nos limitamos a dizer que foram completamente frustradas pelo bom-senso e prudência dos espíritas que, a respeito, receberam provas da benevolência das autoridades. Recomendações haviam sido feitas por todos os chefes de grupos, a fim de não se responder a nenhuma provocação.
Em face da recusa do clero de conceder as orações da Igreja, o corpo foi levado diretamente de casa ao cemitério, seguido por perto de mil pessoas, entre as quais se achavam cerca de cinquenta senhoras e moças, o que não é hábito em Lyon. Sobre o túmulo e apropriada à circunstância, foi lida uma prece por um dos assistentes e por todos ouvida, cabeça descoberta, em religioso recolhimento. Em seguida a multidão retirou-se, silenciosa e, como havia começado, tudo terminou na mais perfeita ordem.
2. — Como contraste diremos que o Sr. Sanson, nosso antigo colega, recebeu todos os sacramentos antes de morrer; que foi levado à igreja e acompanhado por um padre ao cemitério, embora tivesse previamente declarado de modo formal que era espírita e não renegaria nenhuma de suas convicções. “Entretanto, disse-lhe o padre, se eu condicionasse a absolvição a esta negação, que fareis? – Lamentaria muito, respondeu o Sr. Sanson, mas persistiria, porquanto vossa absolvição de nada valeria. – Como assim? Então não credes na eficácia da absolvição? – Sim, mas não creio na virtude de uma absolvição recebida por hipocrisia. Ouvi-me: para mim o Espiritismo não é apenas uma crença, um artigo de fé; é um fato tão patente quanto a vida. Como quereis que eu negue um fato que me é demonstrado como o dia que nos ilumina e ao qual devo a cura miraculosa da minha perna? Se o fizesse, seria com os lábios e não com o coração; eu seria perjuro. Assim, daríeis absolvição a um traidor. Digo que de nada valeria porque a daríeis pro forma e não pelo fundo. Eis por que preferiria dela ser dispensado. – Meu filho, replicou o padre, sois mais cristão do que muitos que dizem sê-lo.
Recolhemos estas palavras do próprio Sr. Sanson.
Circunstâncias semelhantes às do Sr. Renaud podem apresentar-se aqui ou alhures. Esperamos, pois, que todos os espíritas hão de seguir o exemplo dos confrades de Lyon, e que em nenhum caso desistam da moderação, que é uma consequência dos princípios da doutrina e a melhor resposta a dar aos seus detratores, que só buscam pretextos para motivar os seus ataques.
3. — Evocado num grupo central de Lyon, trinta e seis horas depois de sua morte, o Sr. Renaud deu a seguinte comunicação:
“Ainda estou um pouco embaraçado para comunicar-me e, não obstante encontre aqui rostos amigos e corações simpáticos, sinto-me quase envergonhado ou, para melhor dizer, meu pensamento está um pouco imaturo. Oh! senhora B…, que diferença e quanta mudança na minha posição! Muito obrigado por vossa constante afeição; obrigado, Sra. V.., por vossas boas visitas, por vossa consideração.
“Perguntais e quereis saber o que me aconteceu desde ontem. Comecei a me desligar do corpo pela manhã. Parecia que me evaporava; sentia o sangue coagular-se nas veias e pensava que ia aniquilar-me. Pouco a pouco perdi a percepção das ideias e adormeci com certa dor compressiva; depois despertei e então vi à minha volta Espíritos que me cercavam e me festejavam; então experimentei alguma confusão: não distinguia bem os mortos e os vivos; as lágrimas e as alegrias me perturbaram um pouco a cabeça, e de todos os lados me chamavam, como ainda me chamam neste momento. Sim, graças aos verdadeiros amigos que me protegeram, evocado e encorajado nesta dura passagem, pois há sofrimento no desligamento, e não é sem dor muito viva que o Espírito deixa o corpo, compreendo o grito de chegada e me explico o suspiro da partida. Já fui evocado várias vezes e estou fatigado como um viajor que atravessou a noite.
“Antes de partir, permitiríeis que eu voltasse e vos apertasse a mão?”
G. Renaud.
O Sr. Renaud foi evocado na Sociedade de Paris. A falta de espaço nos obriga
a adiar a publicação. [Publicação não encontrada.]