Os séculos de transição na história da Humanidade assemelham-se a vastas planícies semeadas de monumentos, misturados confusamente e sem harmonia. A harmonia mais pura, mais justa está no detalhe, e não no conjunto. Os séculos abandonados pela fé e pela esperança são páginas sombrias em que a Humanidade, trabalhada pela dúvida, se consome surdamente nas civilizações refinadas, para chegar a uma reação que, na maioria das vezes, as arrastava, para as substituir por outras civilizações. Os pesquisadores do pensamento, mais que os sábios, aprofundam em nossa época, num ecletismo racional, esses misteriosos encadeamentos da história, essas trevas, essa uniformidade, lançadas como nevoeiros e nuvens espessas sobre civilizações até há pouco férteis e vivazes. Estranho destino dos povos! É quase ao nascer do Cristianismo, é nas cidades mais opulentas, sede dos maiores bispados do Oriente e do Ocidente, que começam as devastações da decadência; é no próprio meio da civilização, do esplendor inteligente das artes, das ciências, da literatura e dos sublimes ensinamentos do Cristo, que começa a confusão das ideias, as dissensões religiosas; é no próprio berço da Igreja romana, tomada de orgulho e soberba com o sangue dos mártires, que a heresia, gerada pelos dogmas supersticiosos e pelas hierarquias eclesiásticas, se insinua como serpente iminente, para morder o coração da Humanidade e lhe infiltrar nas veias, em meio a desordens políticas e sociais, o mais terrível e o mais profundo de todos os flagelos: a dúvida. Desta vez a queda é imensa; a fraqueza religiosa dos padres, unida aos heresiarcas fanáticos, tira toda a força à política, todo amor ao país, e a Igreja do Cristo torna-se humana, mas não mais humanitária. Creio ser inútil aqui me apoiar sobre relações apavorantes dessa época com a nossa. Vivendo ao mesmo tempo com as tradições do Cristianismo e com a esperança do futuro, as mesmas comoções sacodem a nossa velha civilização, as mesmas ideias se dividem e a mesma dúvida atormenta a Humanidade, sinais precursores da renovação social e moral que se prepara. Ah! orai, espíritas; vossa época atormentada e blasfema é uma rude época, que os Espíritos vêm instruir e encorajar.
Lamennais. n
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[v. Lamennais.]