Pedis-me hoje, caros e amados ouvintes, que vos dite ao meu médium a história da origem da linguagem. Esforçar-me-ei por vos satisfazer. Deveis, porém, compreender que me será impossível, nalgumas linhas, tratar inteiramente esta grave questão, à qual se liga, forçosamente, outra ainda mais importante: a da origem das raças humanas.
Que Deus Todo-Poderoso, tão benevolente para com os espíritas, conceda-me a lucidez necessária para afastar de minha dissertação a obscuridade, a confusão e, principalmente, todo o erro!
Entro na matéria dizendo-vos: Admitamos como princípio esta verdade: que o Criador deu a todos os seres da mesma raça um modo especial, mas seguro, para se entenderem e para se comunicarem entre si. Entretanto, essa linguagem, esse modo de comunicação era tanto mais restrito quanto mais inferiores as espécies. É em virtude desta verdade, desta lei, que os selvagens e as tribos pouco civilizadas possuem línguas tão pobres que uma porção de termos utilizados nas regiões favorecidas pela civilização lá não encontram palavras correspondentes. E é em obediência a essa mesma lei que as nações que progridem criam novas expressões para descobertas e necessidades novas.
Como disse alhures, a Humanidade já atravessou três grandes períodos: a fase bárbara, a fase hebraica e pagã e a fase cristã. A esta última sucederá o grande período espírita, cujos fundamentos iniciais lançamos entre vós.
Examinemos, pois, a primeira fase e o começo da segunda. Não repetirei senão o que já disse. A primeira fase humana, que poderemos chamar pré-hebraica ou bárbara, arrastou-se lentamente e por tempo prolongado em horrores e convulsões de uma terrível barbárie. Aí o homem é peludo como um animal selvagem e, como as feras, abriga-se em cavernas e nos bosques. Vive de carne crua e se repasta de seu semelhante, qual se fora excelente caça. É o mais absoluto reino da antropofagia. Nada de sociedade, nada de família! Alguns grupos dispersos aqui e ali, vivendo na mais completa promiscuidade e sempre prontos a se entredevorarem: tal é o quadro desse período cruel. Nenhum culto, nenhuma tradição, nenhuma ideia religiosa. Apenas as necessidades animais a satisfazer, eis tudo! Prisioneira de uma matéria estupefaciente, alma fica morna e latente em sua prisão carnal; nada pode contra o invólucro grosseiro que a encerra e sua inteligência apenas se pode mover nos recônditos de um cérebro limitado. O olho é apagado, a pálpebra pesada, o lábio grosso, o crânio achatado e a linguagem se restringe a alguns sons guturais. Nada prenuncia que desse animal bruto sairá o pai das raças hebraicas e pagãs. Todavia, com o tempo eles sentem necessidade de se defenderem contra outros carnívoros, como o leão e o tigre, cujas presas terríveis e garras afiadas venciam facilmente o homem isolado. Entretanto, o reino da matéria e da força bruta se manteve durante toda essa frase cruel. Não procureis no homem dessa época nem sentimentos, nem razão, nem linguagem propriamente dita; ele apenas obedece à sensação grosseira e só tem um objetivo: beber, comer e dormir. Nada além disso. Pode dizer-se que o homem inteligente aí está em germe, mas não existe ainda. Contudo é preciso constatar que, entre as raças brutais, já aparecem alguns seres superiores, Espíritos encarnados com a incumbência de conduzir a Humanidade ao seu objetivo e apressar o advento das eras hebraica e pagã. Devo acrescentar que, além desses Espíritos encarnados, o globo terrestre era visitado frequentemente por esses ministros de Deus, cuja tradição a memória consagrou sob os nomes de anjos e arcanjos e que, quase todos os dias, estes se punham em contato com os seres superiores, Espíritos encarnados, de que acabo de falar. A missão de alguns desses anjos continuou durante grande parte da segunda fase, ou humanitária. Devo aditar que o quadro que acabo de esboçar, dos primeiros tempos da Humanidade, vos ensina um pouco a que leis rigorosas estão submetidos os Espíritos que ensaiam viver em planetas de formação recente.
A linguagem propriamente dita, como a vida social, só começa a ter um caráter certo a partir da era hebraica e pagã, durante a qual o Espírito encarnado, sempre sujeito à matéria, começa a se revoltar e a quebrar alguns elos de sua pesada cadeia. A alma fermenta e se agita em sua prisão carnal; por esforços reiterados reage energicamente contra as paredes do cérebro, cuja matéria sensibiliza; melhora e aperfeiçoa, por um trabalho constante, o jogo de suas faculdades, desenvolvendo, consequentemente, os órgãos físicos; enfim o pensamento pode ser lido num olhar límpido e claro. Já estamos longe das frontes achatadas! É que a alma se sente, se reconhece, tem consciência de si mesma e começa a compreender que é independente do corpo. Desde então luta com ardor para se desvencilhar da opressão de sua robusta rival. O homem se modifica cada vez mais e a inteligência se movimenta mais livremente num cérebro mais desenvolvido. Constatamos, todavia, que nessa época o homem ainda é circunscrito e considerado como animal; o homem é escravo do homem. A escravidão é consagrada pelo Deus dos hebreus, tanto quanto pelos deuses pagãos; e Jeová, assim como Júpiter Olímpico, pede sangue e vítimas vivas.
Esta segunda fase oferece aspectos curiosos, do ponto de vista filosófico. Já tracei um quadro rápido, que meu médium vos comunicará oportunamente. Seja como for, e para voltar ao tema em estudo, tende certeza de que não foi senão na época dos grandes períodos pastorais e patriarcais que a linguagem humana tomou um aspecto regular e adotou formas e sons especiais. Durante essa época primitiva, em que a Humanidade se libertava das fraldas e do balbuciar da primeira infância, poucas palavras bastavam aos homens, para os quais ainda não tinha nascido a ciência, cujas necessidades eram muito restritas e as relações sociais não ultrapassavam a porta das tendas, o âmbito da família e, mais tarde, os confins das tribos. Era a época em que o pai, o pastor, o ancião, o patriarca, numa palavra, dominava como senhor absoluto, com direito de vida e morte.
A língua primitiva era uniforme; porém, à medida que crescia o número de pastores, estes, deixando por sua vez a tenda paterna, foram constituir novas famílias em regiões desabitadas, formando novas tribos. Então a língua por eles usada se modificou gradativamente, de geração em geração, da que era usada na tenda paterna, que outrora haviam abandonado. Assim foram criados os vários idiomas. Aliás, embora não seja minha intenção dar um curso de linguística, já deveis ter notado que as línguas mais discordantes apresentam palavras cujo radical pouco variou e cujo significado é quase o mesmo. Por outro lado, conquanto tenhais a pretensão de formardes um velho mundo, a mesma razão, que corrompeu a língua primitiva, ainda reina soberana em vossa França tão orgulhosa de sua civilização, onde vedes as concordâncias, os termos e a significação variarem, já não direi de província em província, mas de comuna em comuna. Apelo aos que percorreram a Bretanha, † como aos que viajaram à Provença † e ao Languedoc. † É uma variedade de idiomas e de dialetos que espanta a quem os quisesse coligir num único dicionário.
Uma vez que os homens primitivos, ajudados pelos missionários do Eterno, emprestaram a certos sons especiais outras tantas ideias especiais, foi criada a língua falada; as modificações que mais tarde ela sofreu o foram sempre em razão do progresso humano. Por conseguinte, conforme a riqueza da língua, pode estabelecer-se facilmente o grau de civilização a que chegou o povo que a fala. O que posso acrescentar é que a Humanidade marcha para uma língua única, consequência forçada de uma comunhão de ideias morais, políticas e, sobretudo, religiosas. Tal será a obra da filosofia nova — o Espiritismo — que hoje ensinamos.
Erasto. n
[1]
[v. Thomas
Erasto.]