1. — Como se sabe, a identidade dos Espíritos que se manifestam é uma das dificuldades do Espiritismo; e os meios empregados para a verificação muitas vezes conduzem a resultados negativos. A este respeito, as melhores provas são as que se originam da espontaneidade das comunicações. Embora essas provas, quando bem caracterizadas, não sejam raras, é bom constatá-las: primeiro, para a própria satisfação, e como objeto de estudo; depois, para responder aos que lhes negam a possibilidade, provavelmente porque, ou foram malconduzidas e não alcançaram sucesso, ou porque têm ideias preconcebidas. Repetiremos o que já dissemos alhures: a identidade dos Espíritos que viveram em épocas recuadas e que nos vêm transmitir ensinamentos é quase impossível de verificar, não se devendo ligar aos nomes senão uma importância relativa. Aquilo que eles dizem é bom ou mau, racional ou ilógico, digno ou indigno do nome que assinam? Eis toda a questão. Já o mesmo não se dá com os Espíritos contemporâneos, cujos hábitos e caráter nos são conhecidos, os quais podem provar a sua identidade por particularidades e detalhes, particularidades que são raramente obtidas quando se lhes pedem e que é preciso saber esperar. Tal é o fato relatado na carta a seguir:
2. — “Bordeaux, † 25 de janeiro de 1862.
“Meu caro Sr. Kardec,
“Sabeis que temos o hábito de vos submeter todos os nossos trabalhos, confiando inteiramente nas vossas luzes e na vossa experiência para os apreciar. Assim, quando para nós se trata de casos de admirável identidade, limitamo-nos a vo-los narrar em todos os seus detalhes.
“O Sr. Guipon, inspetor de contabilidade da Companhia de Estradas de Ferro do Sul, membro do grupo diretor da Sociedade Espírita de Bordeaux, escreveu-me a seguinte carta, datada de 14 do corrente:
“Meu caro Sr. Sabò,
“Permiti que lhe peça evocar, em sessão, o Espírito de Carrère, subchefe de equipe da estação ferroviária de Bordeaux, morto no comando de uma manobra em 18 de setembro último. Incluso e em envelope à parte os detalhes dos fatos que desejo sejam constatados e que, imagino, seriam para nós sério assunto de estudo e de instrução. Rogo o obséquio de não abrirdes o envelope senão depois da evocação.”
L. Guipon.
3. — A 18 do mesmo mês, numa reunião de cerca de dez pessoas distintas de nossa cidade, fizemos a evocação solicitada:
1. Evocação do Espírito de Carrère.
Resposta. – Eis-me aqui.
2. Qual a vossa posição no mundo dos Espíritos?
Resposta. – Não sou nem feliz, nem infeliz. Aliás, estou muitas vezes na Terra; mostro-me a alguém que não fica muito contente por me ver.
3. Com que objetivo vos manifestais a essa pessoa?
Resposta. – Ah! vede, eu ia morrer; tinha medo e tinham medo de mim. Procuravam um Cristo em toda parte para me ajudar a transpor a difícil passagem da vida à morte, e a pessoa a quem me mostro tinha um, mas recusou-se a emprestar, para que o colocassem sobre os meus lábios moribundos e depositar entre as minhas mãos, como penhor de paz e amor. Pois bem! ela terá de me ver por muito tempo em volta do Cristo; aí me verá sempre. Agora vou embora. Sinto-me mal aqui. Deixai que eu parta. Adeus.
Imediatamente depois dessa evocação abri o envelope selado, que continha os seguintes detalhes:
“Por ocasião da morte de Carrère, subchefe de equipe em Bordeaux, morto em 18 de dezembro último, o Sr. Beautey, chefe da estação ferroviária P V, mandou transportar o corpo para a estação de passageiros e ordenou a um homem da equipe que fosse ao seu domicílio, a fim de pedir à Sra. Beautey a imagem de um Cristo para colocar sobre o cadáver. Esta senhora respondeu que o Cristo estava quebrado e, por conseguinte, não o podia emprestar.
“Por volta de 10 de janeiro corrente a Sra. Beautey confessou ao marido que o Cristo que ela recusara não estava quebrado; que não o quisera emprestar para não ter que experimentar novamente as emoções consequentes a um acidente semelhante, ocorrido há algum tempo e mais ou menos nas mesmas condições. Em seguida acrescentou que, doravante, jamais recusaria algo a um morto e assim se justificou: — Durante toda a noite da morte daquele homem, ele ficou visível para mim; vi-o durante muito tempo, postado em volta do Cristo, depois ao seu lado.
“A Sra. Beautey, que nunca vira nem ouvira falar daquele homem, descreveu-o com tanta exatidão a seu marido que este o reconheceu como se tivesse estado presente. Aliás, não é a primeira vez que, em estado de vigília, a Sra. Beautey vê Espíritos. Entretanto, um fato chamou a atenção: o Espírito de Carrère a impressionou bastante, o que não lhe acontecia ao ver outros Espíritos. – (Assinado) Guipon.”
Mais abaixo se acha a seguinte citação:
“Esta narrativa é perfeitamente exata.
“Assinado: Beautey, chefe de estação.”
Julguei dever relatar o caso de identidade que acabo de expor, muito raro, aliás, ocorrido seguramente com a permissão de Deus, que se serve de todos os meios para ferir a incredulidade e a indiferença.
Se julgardes útil publicar esse interessante episódio, encontrareis adiante as assinaturas das pessoas que assistiram à sessão. Elas me encarregam de vos dizer que seus nomes podem ser declinados claramente e que, nestas circunstâncias, conservar o incógnito seria um erro. Os nomes próprios que figuram nos minuciosos detalhes da evocação de Carrère também podem ser publicados.
Vosso servo devotado,
A. Sabò.
Atestamos que os detalhes relatados na presente carta são verídicos em todos os pontos e não hesitamos em os confirmar com a nossa assinatura.
A. Sabò, chefe da contabilidade da Companhia de Estradas de Ferro do Sul, 13, rue Barennes. – Ch. Collignon, capitalista, rue Sauce, 12. – Émilie Collignon, capitalista. – L’Angle, empregado das contribuições indiretas, rue Pèlegrin, 28. – viúva Cazemajoux. – Guipon, inspetor da contabilidade e das receitas das estradas de ferro do Sul, 119, chemin de Bègles. – Ulrichs, negociante, rue des Chartrons, 17. – Chain, negociante. – Jouanni, empregado do Sr. Arman, construtor de navios, rue Capenteyre, 26. – Gourgues, negociante, chemin de Saint-Genès, 64. – Belly, mecânico, rue Lafurterie, 39. – Hubert, capitão do 88º de linha. – Puginier, tenente do mesmo regimento.
Como de costume, os incrédulos não deixarão de levar o caso à conta
da imaginação. Dirão, por exemplo, que a Sra. Beautey tinha o espírito
abalado pela recusa e que o remorso a fez acreditar que via Carrère.
Convenhamos que isto é possível; mas os negadores, que pouco se preocupam
em analisar antes de julgar, não examinam se alguma circunstância escapa
à sua teoria. Como explicarão a descrição por ela feita, de um homem
que jamais vira? “É um acaso”, dirão. — Quanto à evocação, também direis
que o médium apenas traduziu o seu pensamento, ou o dos assistentes,
considerando-se que as circunstâncias eram ignoradas? É ainda o acaso?
— Não; mas entre os assistentes havia o Sr. Guipon, autor da carta lacrada
e conhecedor do fato. Ora, seu pensamento pôde ser transmitido ao médium,
pela corrente de fluidos, uma vez que os médiuns estão sempre num estado
de superexcitação febril, mantida e provocada pela concentração dos
presentes e por sua própria vontade. Nesse estado anormal que, segundo
o Sr.
Figuier, não passa de um estado biológico, há emanações que escapam
do cérebro e dão percepções excepcionais, provenientes da expansão dos
fluidos, que estabelecem relações entre as pessoas presentes e, mesmo
ausentes. Vedes, pois, por esta explicação, tão clara quanto lógica,
que não há necessidade de recorrer à intervenção de vossos supostos
Espíritos, que só existem na vossa imaginação. [v. História
do maravilhoso e do sobrenatural.] – Confessamos com toda humildade
que tal raciocínio ultrapassa a nossa inteligência, e perguntamos se
vós mesmos o compreendeis bem.