Um Espírito viu-se forçado a deixar a Terra, que não pudera visitar, porque procedia de uma região muito inferior; mas tinha pedido para sofrer uma prova e Deus não lha recusara. Infelizmente, a esperança que acalentava ao entrar no mundo terrestre não se tinha realizado e, havendo triunfado sua natureza bruta, cada um dos seus dias foi marcado pelos mais hediondos crimes. Durante muito tempo, todos os Espíritos guardiães dos homens haviam tentado desviá-lo do atalho que seguia, mas, extenuados, haviam abandonado o infeliz a si mesmo, quase temerosos de seu contato. Entretanto, tudo tem um fim; mais cedo ou mais tarde se descobre o crime e a justiça repressiva dos homens impõe ao culpado a pena de talião. Desta vez não foi cabeça por cabeça: foi cabeça por cem; e ontem esse Espírito, depois de ter ficado meio século na Terra, ia retornar ao espaço para ser julgado pelo Juiz Supremo, que pesa as faltas muito mais inexoravelmente do que o faríeis vós mesmos.
Em vão os Espíritos guardiães tinham voltado com a condenação e tentado introduzir o arrependimento nessa alma rebelde; em vão tinham impelido para junto dele toda a família: cada um desejaria arrancar-lhe um suspiro de pesar ou, pelo menos, um sinal; aproximava-se o momento fatal e nada abrandava essa natureza inflexível e, por assim dizer, bestial. No entanto, um único pesar, antes de deixar a vida, poderia ter suavizado o sofrimento do infeliz, condenado pelos homens a perder a vida, e por Deus a incessantes remorsos, horrível tortura, semelhante ao abutre a roer o coração que renasce sem cessar.
Enquanto os Espíritos trabalhavam sem descanso para nele fazer brotar ao menos o pensamento do arrependimento, um outro Espírito, Espírito encantador, dotado de uma sensibilidade e de uma ternura sublimes, adejava em redor de uma cabeça muito querida, cabeça ainda viva, e lhe dizia: “Pensa nesse infeliz que vai morrer; fala-me dele.” Quando a caridade é simpática, quando dois Espíritos se entendem e não fazem mais que um, o pensamento como que é elétrico. Logo o Espírito encarnado disse a esse mensageiro do amor: “Meu filho, esforça-te por inspirar um pouco de remorso a esse miserável que vai morrer; vai, consola-o!” E assim pensando, compreendendo tudo que o desventurado criminoso ia ter de suportar em sofrimentos para sua expiação, uma lágrima furtiva escapou dos olhos daquele que sozinho, nessa hora matinal, despertava pensando naquele ser impuro, que dentro de instantes deveria prestar contas. O afável mensageiro recolheu essa lágrima benfazeja na concha de sua delicada mão e, em voo rápido, a levou ao tabernáculo que encerra tais relíquias e assim fez a sua prece: “Senhor, um ímpio vai morrer; vós o condenastes, mas dissestes: “Eu perdoo ao remorso e concedo a indulgência ao arrependimento.” Eis uma lágrima de verdadeira caridade, que atravessou do coração aos olhos do ser que mais amo no mundo. Eu vos trago esta lágrima: é o resgate do sofrimento; dai-me o poder de enternecer o coração de rocha do Espírito que vai expiar seus crimes. – Vai, respondeu-lhe o Mestre; vai, meu filho, esta lágrima bendita pode pagar muitos resgates.”
A doce criança partiu; chegou junto do criminoso no momento do suplício; o que ela lhe disse só Deus o sabe; o que se passou naquele ser transviado ninguém compreendeu, mas, abrindo os olhos à luz, viu desdobrar-se à sua frente todo um passado terrível. Ele, que o instrumento fatal não tinha abalado; ele, que a condenação à morte tinha feito sorrir, levantou os olhos e uma grossa lágrima, ardente como o chumbo fundido, resvalou de seus olhos. A essa prova muda, a testemunhar-lhe que sua prece tinha sido ouvida, o anjo da caridade estendeu sobre o infeliz suas brancas asas, recolheu aquela lágrima e parecia dizer: “Infortunado! sofrerás menos; eu levo a tua redenção.”
Que contraste pode inspirar a caridade do Criador! O mais impuro dos seres, nos últimos degraus da escada e o anjo mais casto que, prestes a entrar no mundo dos eleitos, a um sinal vem estender sua proteção visível sobre esse pária da sociedade! Do alto de seu poderoso tribunal Deus abençoava essa cena comovedora e nós todos dizíamos, rodeando essa criança: “Vai receber a tua recompensa.” A doce mensageira subiu aos céus, lágrima escaldante nas mãos e pôde dizer: “Mestre, ele chorou; eis a prova!” — Está bem; respondeu o Senhor; conservai essa primeira gota de orvalho do coração endurecido; que essa lágrima fecunda vá regar esse Espírito ressequido pelo mal; mas guardai sobretudo a primeira lágrima que esta criança me trouxe; que essa gota d'água se torne diamante puro, pois é mesmo a pérola sem mácula da verdadeira caridade. Narrai este exemplo aos povos e dizei-lhes: “Solidários uns com os outros, vede: uma lágrima de amor da Humanidade e uma lágrima de remorso obtida pela prece; essas duas lágrimas serão as pedras mais preciosas do vasto escrínio da caridade.”
Cárita. n
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[v. Cárita.]