1. — Várias vezes temos reproduzido nesta Revista ditados espontâneos do Espírito Channing, que não desmentem a sua superioridade de caráter e de inteligência. Por certo nossos leitores serão gratos por lhes darmos uma ideia das opiniões que ele professava em vida, pelo seguinte fragmento de um de seus discursos, cuja tradução devemos à gentileza de um dos nossos assinantes. Sendo seu nome pouco conhecido na França, faremos precedê-lo de breve notícia biográfica.
William
Ellery Channing nasceu em 1780, em Newport, †
Rhode-Island, Estado de Nova Iorque. Seu avô, William Ellery, †
assinou a famosa declaração da independência. Channing foi educado no
Harward College, †
destinado à profissão médica; mas seus gostos e aptidões o levaram à
carreira religiosa e em 1803 tornou-se ministro da capela unitarista
†
de Boston. †
Sempre permaneceu nessa cidade, professando a doutrina dos Unitaristas,
seita protestante que conta numerosos adeptos na Inglaterra e na América,
nas camadas mais elevadas. Fez-se notar por seus pontos de vista amplos
e liberais. Por sua eloquência notável, por suas numerosas obras e pela
profundidade de sua filosofia, é contado no número dos homens mais destacados
dos Estados Unidos. Partidário declarado da paz e do progresso, pregou
sem tréguas contra a escravidão e fez a essa instituição uma guerra
tão obstinada, que a muitos liberais tal excesso de zelo, prejudicial
à sua popularidade, por vezes parecia inoportuno. Seu nome fez autoridade
entre os antiescravagistas. Morreu em Boston em 1842, aos 62 anos de
idade. Gannet o sucedeu como chefe da seita dos Unitaristas. [William
Channing Gannett.]
2. — “Para a massa dos homens, o céu é quase sempre um mundo de fantasia: falta-lhe substância. A ideia de um mundo no qual existam seres sem corpos grosseiros, Espíritos puros ou revestidos de corpos espirituais ou etéreos, parece-lhes pura ficção; aquilo que nem se pode ver nem tocar não lhes parece real. Isto é triste, mas não é de admirar; de fato, como é possível que homens mergulhados na matéria e em seus interesses, não cultivando o conhecimento da alma e de suas capacidades espirituais, possam compreender uma vida espiritual mais elevada? A multidão considera como sonhador visionário aquele que fala claramente e com alegria de sua vida futura e do triunfo do Espírito sobre a decomposição corpórea. Esse cepticismo sobre as coisas espirituais e celestes é tão irracional e pouco filosófico quanto aviltante.
“E quanto é pouco racional imaginar que não haja outros mundos além deste, outro modo de existência mais elevado que o nosso! Quem é aquele que, percorrendo os olhos sobre esta Criação imensa, pode duvidar que não haja seres superiores a nós, ou ver algo despropositado em conceber o Espírito num estado menos circunscrito, menos entravado do que na Terra, em outras palavras, que haja um mundo espiritual?
“Aqueles que nos deixaram por um outro mundo devem tomar por este um interesse ainda mais profundo; seus laços com os que aqui deixaram se depuram, mas não se dissolvem. Se o estado futuro é um melhoramento do estado presente, se a inteligência deve ser fortalecida e o amor ampliado, a memória, poder fundamental da inteligência, deve agir sobre o passado com uma energia maior, e todas as afeições benévolas que aqui conservamos devem receber uma atividade nova. Supor apagada a vida terrena do Espírito seria destruir a sua utilidade, romper a relação dos dois mundos e subverter a responsabilidade; de outro modo, como a recompensa e o castigo atingiriam uma existência esquecida? Não; é preciso que conosco levemos o presente, seja qual for o nosso futuro, feliz ou desgraçado. Os bons formarão, é verdade, laços novos mais santos; mas, sob a influência expansiva desse mundo melhor, o coração terá uma capacidade bastante grande para reter os laços antigos, à medida que forma novos; lembrar-se-á com ternura do seu lugar de nascimento, enquanto goza de uma existência mais madura e mais feliz. Se eu pudesse imaginar que aqueles que partiram morrem para os que ficam, eu os honraria e amaria menos. O homem que, deixando-os, esquece os seus, parece desprovido dos melhores sentimentos de nossa natureza; e se, em sua nova pátria, os justos devessem esquecer os seus pais na Terra, se, ao se aproximarem de Deus, devessem cessar de interceder por eles, poderíamos achar que a mudança lhes foi proveitosa?
“Poder-se-ia perguntar se os que são levados ao céu não apenas se lembram com interesse dos que deixaram na Terra, mas, ainda, se têm um conhecimento presente e imediato. Não tenho nenhuma razão para crer que tal conhecimento não exista. Estamos habituados a considerar o céu como afastado de nós, mas nada o prova. O céu é a união, a sociedade dos seres espirituais superiores. Não podem esses seres povoar todo o Universo, reproduzindo o céu por toda parte? Como nós, é provável que tais seres sejam circunscritos por limites materiais? Disse Milton:
“Millions of spiritual beings walk the earth
Both when we make and when we sleep”
“Milhões de seres espirituais percorrem a Terra
Tão bem quando velamos, como quando dormimos.”
“Um sentido novo, uma nova visão poderia mostrar-nos que o mundo espiritual nos envolve por todos os lados. Mas suponde mesmo que o céu esteja afastado; nem por isso seus habitantes deixam de estar presentes e nós visíveis para eles; porém, o que entendemos por presença? Não estou presente para aqueles dentre vós que meu braço não pode alcançar, mas que vejo distintamente? Não está plenamente de acordo com o nosso conhecimento da Natureza supor que os que estão no céu, seja qual for o local de sua residência, possam ter sentidos e órgãos espirituais, por meio dos quais podem ver o que está distante, com a mesma facilidade com que distinguimos o que está perto? Nossos olhos percebem sem esforço planetas a milhões de léguas de distância e, com o auxílio da Ciência, podemos reconhecer até mesmo as desigualdades de sua superfície. Podemos mesmo imaginar um órgão visual bastante sensível ou um instrumento suficientemente poderoso para permitir distinguir, de nosso globo, os habitantes desses mundos afastados. Por que, então, os que entraram na sua fase de existência mais elevada, que estão revestidos de corpos espiritualizados, não poderiam contemplar nossa Terra tão facilmente quanto na época em que era a sua morada?
“Isto pode ser verdade; mas, se o aceitamos assim, não abusamos: poder-se-ia abusar. Não pensamos nos mortos como se eles nos contemplassem com um amor parcial, terreno. Eles nos amam mais que nunca, mas com uma afeição espiritual depurada. Têm por nós apenas um desejo: o de que nos tornemos dignos de nos reunirmos em sua morada de beneficência e de piedade. Sua visão espiritual penetra as nossas almas; se pudéssemos ouvir a sua voz, não seria uma declaração de afeição pessoal, mas um apelo vivificante a maiores esforços, a uma abnegação mais firme, a uma caridade mais ampla, a uma paciência mais humilde, a uma obediência mais filial à vontade de Deus. Eles respiram a atmosfera da benevolência divina, e sua missão é agora mais elevada do que o era aqui.
“Perguntar-me-eis: se nossos mortos conhecem os males que nos afligem, existirá sofrimento nessa vida bendita? Respondo que não posso considerar o céu senão como um mundo de simpatias. Parece-me que nada pode melhor atrair o olhar de seus habitantes benfazejos do que a visão da miséria de seus irmãos. Mas esta simpatia, se dá origem à tristeza, está longe de tornar infelizes os que a sentem. Neste mundo inferior, a compaixão desinteressada, aliada ao poder de abrandar o sofrimento, é uma garantia de paz, muitas vezes proporcionando os mais puros prazeres. Livres de nossas enfermidades presentes e esclarecidos pela visão mais dilatada da perfeição da governança divina, esta simpatia acrescentará mais encanto à virtude dos seres abençoados e, como qualquer outra fonte de perfeição, só fará aumentar-lhes a felicidade.
“Nossos amigos, que nos deixam por esse outro mundo, não se encontram no meio de desconhecidos; não têm esse sentimento desolado de haver trocado a pátria por uma terra estrangeira. As mais ternas palavras de amizade humana não se aproximam dos acentos de felicitações que os esperam quando chegarem àquela morada. Lá o Espírito tem meios mais seguros de se revelar do que aqui; o recém-chegado sente-se e se vê cercado de virtudes e de bondade e, por essa visão íntima dos Espíritos simpáticos que os rodeiam, ligações mais fortes que as cimentadas pelos anos na Terra podem criar-se momentaneamente. As mais íntimas afeições na Terra são frias, comparadas às dos Espíritos. De que maneira eles se comunicam? Em que língua e por meio de que órgãos? Ignoramo-lo, mas sabemos que o Espírito, progredindo, deve adquirir maior facilidade para transmitir o seu pensamento.
“Incorreríamos em erro se crêssemos que os habitantes do céu se limitam à comunicação recíproca de suas ideias; ao contrário, os que atingem esse mundo entram em novo estado de atividade, de vida e de esforços. Somos levados a pensar que o estado futuro seja de tal modo feliz que ninguém ali necessite de auxílio, que o esforço cesse, que os bons nada tenham a fazer senão gozar. A verdade, entretanto, é que toda ação na Terra, mesmo a mais intensa, não passa de jogo infantil, comparado à atividade, à energia desdobrada nessa vida mais elevada. E deve ser assim, porquanto não há princípio mais ativo que a inteligência, a beneficência, o amor da verdade, a sede da perfeição, a piedade pelos sofrimentos e o devotamento à obra divina, que são os princípios expansivos da vida de além-túmulo. É, então, que a alma tem consciência de suas capacidades, que a verdade infinita se manifesta diante de nós, que sentimos que o Universo é uma esfera sem limites para a descoberta, para a Ciência, para a caridade e para a adoração. Esses novos objetivos da vida, que reduzem a nada os interesses atuais, manifestam-se constantemente. Não se deve, pois, imaginar que o céu seja composto de uma comunidade estacionária. Eu o concebo como um mundo de planos e de esforços prodigiosos para o seu próprio melhoramento. Considero-o como uma sociedade a atravessar fases sucessivas de desenvolvimento, de virtudes, de conhecimentos, de poder, pela energia de seus próprios membros.
“O gênio celeste está sempre ativo a explorar as grande leis da Criação e os princípios eternos do espírito, a desvendar o belo na ordem do Universo e a descobrir os meios de avanço para cada alma. Lá, como aqui, há inteligências de diversas graus, e os Espíritos mais evoluídos encontram a felicidade e o progresso educando os mais atrasados. Lá o trabalho de educação, como na Terra, progride sempre, e uma filosofia mais divina que a ensinada entre nós revela ao Espírito a sua própria essência, estimulando-o a esforços alegres para a sua própria perfeição.
“O céu encontra-se em relação com outros mundos; seus habitantes são os mensageiros de Deus em toda a Criação; eles têm grandes missões a cumprir e, pelo progresso de sua existência sem-fim, pode Deus lhes confiar o cuidado de outros mundos.”
3. — Este discurso foi pronunciado em 1834. Nessa época não se cogitava de manifestações de Espíritos na América. Channing, portanto, não as conhecia; do contrário teria afirmado o que em certos pontos apenas admitiu como hipótese. Mas não é notável ver esse homem pressentir com tanta precisão aquilo que só deveria ser revelado alguns anos mais tarde? Porque, salvo poucas exceções, sua descrição da vida futura concorda perfeitamente. Só falta a reencarnação; aliás, se a examinarmos bem, vemos que dela ele se aproxima, como chega perto das manifestações, sobre as quais se cala, porque não as conhece. Com efeito, admite o mundo invisível que nos rodeia, em meio a nós, cheio de solicitude por nós, auxiliando-nos a progredir. Daí, às comunicações diretas não há senão um passo. Não admite no mundo celeste a contemplação perpétua, mas a atividade e o progresso; aceita a pluralidade dos mundos corpóreos, mais ou menos adiantados. Se tivesse dito que os Espíritos podiam realizar o seu progresso passando por esses diferentes mundos, teríamos aí a reencarnação. Sem esta, a ideia desses mundos progressivos é mesmo inconciliável com a criação das almas no momento do nascimento dos corpos, a menos que se admita tenham as almas sido criadas mais ou menos perfeitas; neste caso, seria necessário justificar essa preferência. Não é mais lógico dizer que se as almas de um mundo são mais avançadas que as de um outro, é que já viveram em mundos inferiores? O mesmo se pode dizer dos habitantes da Terra, comparados entre si, desde o selvagem até o homem civilizado. Seja como for, perguntamos se um tal retrato da vida de além-túmulo, por suas deduções lógicas, acessíveis às inteligências mais vulgares e aceita pela mais severa razão, não é cem vezes mais adequada para infundir a convicção e a confiança no futuro, do que a horrível e inadmissível descrição das torturas sem-fim, tomadas de empréstimo do Tártaro do paganismo? Os que pregam essas crenças não fazem a menor ideia do número de incrédulos que geram, nem dos recrutas que arregimentam para a falange dos materialistas.
Notemos que Milton, citado nesse discurso, emite sobre o mundo invisível ambiente uma opinião em tudo conforme à de Channing, que é também a dos espíritas modernos. É que Milton, como Channing e como tantos outros homens eminentes, eram espíritas por intuição. É por isso que não cessamos de afirmar que o Espiritismo não é uma invenção moderna; é de todos os tempos, porque houve almas em todos os tempos e em todos os tempos a massa de homens acreditou na alma. Assim, encontram-se traços dessas ideias numa multidão de escritores, antigos e modernos, sagrados e profanos. Essa intuição das ideias espíritas é de tal modo geral que vemos todos os dias uma porção de pessoas que, delas ouvindo falar pela primeira vez, absolutamente não se admiram: não faltava senão uma sistematização para a sua crença.