1. — O Sr.
Michelet tem de se pôr em guarda, pois todos os deuses marinhos
da Antiguidade se aprestam para o maltratar. É o que nos ensina o Sr.
Taxile Delord, num artigo espirituoso publicado pelo Siècle
de 4 de fevereiro último. Sua linguagem é digna do Orfeu nos Infernos,
das óperas bufas parisienses, como testemunha esta amostra: Netuno,
†
aparecendo de repente à porta da residência de Anfitrite, †
onde se haviam reunido os descontentes, exclama: “Eis o Netuno chamado.
Não me esperáveis agora, cara Anfitrite; é a hora de minha sesta; mas
não há meio de fechar os olhos, desde o aparecimento deste diabo de
livro intitulado
La Mer - Google Books. Quis percorrê-lo, mas está
repleto de frivolidades; não sei de que mares o Sr. Michelet quer nos
falar; para mim, é impossível reconhecer-me nele. Todo mundo sabe muito
bem que o mar termina nas colunas de Hércules. Que pode haver além?…
etc.”
Nem é preciso dizer que o Sr. Michelet triunfa em toda a linha. Ora, após a dispersão de seus inimigos, o Sr. Taxile Delord lhe diz: “Talvez vos sintais à vontade ao saber em que se tornaram os deuses marinhos, desde que o mar os expulsou de seu império. Netuno faz a piscicultura em grande quantidade; Glaucus † é professor de natação nos banhos de Ouarnier [antiga casa de banhos em Paris, situado no Quai Voltaire]; † Anfitrite é recepcionista nos banhos do Mediterrâneo, em Marselha; † Nereu † aceitou um lugar de cozinheiro nos navios transatlânticos; vários tritões † morreram e outros se exibem nas feiras.”
2. — Não garantimos a exatidão das informações dadas pelo Sr. Delord sobre a situação atual dos heróis olímpicos; mas, em princípio e sem o querer, ele disse algo mais sério do que tencionava dizer.
Entre os antigos a palavra deus tinha uma acepção muito elástica. Era uma qualificação genérica aplicada a todo ser que lhes parecia elevar-se acima do nível da Humanidade. Eis por que divinizaram seus grandes homens. Não os acharíamos tão ridículos se não nos tivéssemos servido da mesma palavra para designar o Ser Único, soberano senhor do Universo. Os Espíritos, que existiam então como hoje, lá se manifestavam igualmente, e esses seres misteriosos também deviam, conforme as ideias da época, e ainda com maior razão, pertencer à classe dos deuses. Olhando-os como seres superiores, os povos ignorantes lhes rendiam culto; os poetas os cantaram e semearam a sua história de profundas verdades filosóficas, ocultas sob o véu de engenhosas alegorias, cujo conjunto formou a mitologia pagã. O vulgo, que geralmente só vê a superfície das coisas, tomou a figura ao pé da letra, sem rebuscar o fundo do pensamento, absolutamente como aquele que, hoje, não visse nas fábulas de La Fontaine senão conversas de animais.
Tal é, em substância, o princípio da mitologia. Os deuses não eram, pois, senão os Espíritos ou as almas dos seres mortais, como os dos nossos dias; mas as paixões que a religião pagã lhes emprestava não dão uma ideia brilhante de sua elevação na hierarquia espírita, a começar por seu chefe, Júpiter, † o que não os impedia de deleitar-se com o incenso que queimavam em seus altares. O Cristianismo os despojou de seu prestígio e o Espiritismo, hoje, os reduziu ao seu real valor. Sua própria inferioridade pôde sujeitá-los a várias reencarnações na Terra. Poderíamos, pois, entre nossos contemporâneos encontrar alguns Espíritos que outrora tivessem recebido honras divinas, e que, nem por isso, seriam mais adiantados. O Sr. Taxile Delord, que sem dúvida nisso não acredita, por certo quis apenas fazer uma brincadeira. Mas, sem o saber, não deixou de dizer uma coisa talvez mais verdadeira do que pensava, ou, pelo menos em tese, que não é materialmente impossível. Assim, muitas pessoas, imitando o Sr. Jourdan, fazem Espiritismo, mau grado seu.