Loudéac, † 20 de dezembro de 1858.
Senhor Allan Kardec,
Felicito-me por ter-me posto em relação convosco através do gênero de estudos a que mutuamente nos entregamos. Há mais de vinte anos eu me ocupava com uma obra que deveria intitular-se Estudo sobre os Gérmens. Essa obra devia ser especialmente fisiológica; entretanto, minha intenção era demonstrar a insuficiência do sistema de Bichat, que não admite senão a vida orgânica e a vida de relação. Queria provar que existe um terceiro modo de existência, que sobrevive aos dois outros em estado não orgânico. Esse outro terceiro modo nada mais é que a vida anímica, ou espírita, como chamais. Numa palavra, é o gérmen primitivo que engendra os dois outros modos de existência, orgânica e de relação. Também queria demonstrar que os gérmens são de natureza fluídica, bidinâmicos, atrativos, indestrutíveis, autógenos e em número definido, tanto em nosso planeta quanto em todos os meios circunscritos. Quando apareceu Céu e Terra, n de Jean Reynaud, fui obrigado a modificar minhas convicções. Reconheci que meu sistema era muito limitado e com ele admiti que os astros, pela troca de eletricidade que podem estabelecer entre si devem, necessariamente, por meio de várias correntes elétricas, favorecer a transmigração dos gérmens ou Espíritos da mesma natureza fluídica.
Quando se falou das mesas girantes, entreguei-me logo a essa prática e obtive resultados tais que não tive mais nenhuma dúvida quanto às manifestações. Logo compreendi que chegara o momento em que o mundo invisível ia tornar-se visível e tangível e, desde então, marcharíamos para uma revolução nunca vista na ciência e na filosofia. Entretanto, estava longe de esperar que um jornal espírita pudesse estabelecer-se tão depressa e manter-se na França. Hoje, senhor, graças à vossa perseverança, é um fato consumado e de grande alcance. Estou longe de acreditar estejam vencidas as dificuldades; encontrareis muitos obstáculos e sereis humilhado, mas, afinal de contas, a verdade brilhará. Chegar-se-á a reconhecer a justeza da observação de nosso célebre professor Gay-Lussac, que nos dizia em seu curso, a propósito dos corpos imponderáveis e invisíveis, que essas expressões eram inexatas e apenas refletiam nossa impotência no estado atual da ciência, acrescentando que seria mais lógico chamá-los de imponderados. O mesmo ocorre com a visibilidade e a tangibilidade; o que não é visível para um o é para outro, mesmo a olho nu, de que os sensitivos são o exemplo. Finalmente, a audição, o odor e o gosto, que nada mais são do que modificações da propriedade tangível, nulos se mostram no homem em comparação com o cão, a águia e outros animais. Não há, pois, nada de absoluto nessas propriedades, que se multiplicam conforme os organismos. Nada há de invisível, intangível ou imponderável: tudo pode ser visto, tocado ou pesado quando nossos órgãos — nossos primeiros e mais preciosos instrumentos — se tiverem tornado mais sutis.
Às diversas experiências que já recorrestes para constatar nosso terceiro modo de existência — a vida espírita — peço acrescenteis a seguinte: Magnetizai um cego de nascença e, no estado sonambúlico, dirigi-lhe uma série de perguntas sobre as formas e as cores. Se o sensitivo estiver lúcido, provar-vos-á de modo peremptório que, sobre essas coisas, tem conhecimentos que só poderia ter adquirido em uma ou em várias existências anteriores.
Termino, senhor, rogando que aceiteis meus mais sinceros cumprimentos pelo gênero de estudos aos quais vos consagrais. Como jamais temi manifestar as minhas opiniões, podereis inserir esta carta em vossa Revista, se julgardes que seja útil.
Vosso todo devotado servidor,
MORHÉRY, Doutor em Medicina.
Observação – Sentimo-nos muito feliz com a autorização concedida pelo Dr. Morhéry para publicarmos a notável carta que acabamos de ler. Ela prova que, ao lado do homem de ciência, há nele o homem judicioso que vê algo mais além das nossas sensações e que sabe sacrificar as suas opiniões pessoais em benefício da evidência. Nele, a convicção não é fé cega, mas raciocinada; é a dedução lógica do sábio, que não pensa tudo saber.
Allan Kardec.
Imprimerie de H. CARION, rue Bonaparte, 64. †
[1] [Terre
et ciel — Google Books.]